ABRUPTO

26.10.14


CARTAS PORTUGUESAS A LUDWIG PAN, GEÓLOGO E AGRIMENSOR NA AUSTRÁLIA 

(As duas primeiras  aqui, a terceira aquia quarta aqui, a quinta aqui, a sexta aqui.)



Meu caro Ludwig Pan

Sei que chegaste à tua Colónia bem de saúde e bem de viagem. Fica pois sabendo que estas cartas de novas da minha infeliz pátria têm sido plagiadas num jornal de cá, em tom menor, muito menor, vagamente engraçado, mas ao estilo truculento que se usava no passado. Uma vergonha, mas o exemplo vem de cima. É o preço da tua fama, indo como foste, para tão longes terras, tornaste-te exótico e isso dá imprensa. Registe-se.

Que mais devemos registar, agora que o plágio está na moda? O habitual, tão habitual que é profundamente aborrecido se não fosse trágico para muita gente. A nossa vida pública lembra aquelas gazetas de Veneza do século XVIII e XIX que noticiavam pouco mais do que as quedas nocturnas de alguns vadios aos canais onde, para sua sorte, eram muitas vezes pescados vivos, ou não. Monsenhor Paolo Testa escorregou e caiu. Contrariamente ao que dizem as más-línguas, especialidade veneziana, não estava “ubriaco”. E por aí adiante. 

É assim por cá, eles caiem todos os dias à laguna, e logo a imprensa vem dizer que não, não foi por mal, não foi por incompetência, não foi por terem posto o pé onde não deviam, não foi por ignorância das leis da gravidade, não foi por nada. Foi o destino, a troika, as imposições de Bruxelas, a tua governante Merkel, a alma do Sócrates, a nossa resistência endémica à mudança, a conjuntura europeia, o Tribunal Constitucional, etc., etc. Pretextos para explicar a queda nas águas fétidas são muitos. Há até um grupo de comentadores que se especializou em explicar que, apesar de um dos pés ter falhado na borda do canal, uma má coisa, há uma outra boa, visto que o outro pé permaneceu uns segundos mais em terra. É como o Orçamento, “tem umas coisas más e outras boas”… as boas são as previsões hipotéticas e umas migalhas em nome da natalidade, a única “causa” do governo e da Associação das Famílias Numerosas. As más são a “má condução da imagem do governo”, a briga em público entre o número um e o número dois, o mau timing de algumas medidas, ou seja, minudências de coreografia política. Estamos assim, meu caro Ludwig, enterrados na laguna até ao pescoço. Como homem ilustrado que és, sabes muito bem o que aquelas águas transportam. E que mais te conte, agora que estás na civilização? Como é comer num prato, dormir numa cama, beber um Gewürztraminer, e olhar de frente com gula um Eisbein? Faz a ti próprio o favor de te poupar a esse miserável complexo de culpa alemão diante do prazer, que nos deu o pior da Alemanha, o romantismo, a obediência, a burocracia, o idealismo filosófico, a organização, e os Verdes. Como te sei não atreito aos outros males alemães, aliás bastante filhos destes, a última coisa que desejaria era que a prolongada estadia nos antípodas com os aborígenes, te tornasse num bom selvagem transposto para a Germânia, a comer tofu, algas, pastas com a palavra biológica, iogurtes de aloé vera e a beber água de uma qualquer nascente pura e cristalina nos Alpes. Bom, neste último caso, sei que não vais ceder à lei seca, porque afinal sempre havia bons whiskeys na Austrália, e recordo-me que me falaste com entusiasmo dos da Tasmânia, feitos por demónios com duas pernas. 

Falo-te com acinte dessa praga adjectivada de “verde”, que na minha pátria, serviu para aumentar os impostos, com o mais nobre dos motivos, que “passa” sempre bem. O álcool também subiu, e o tabaco, os velhos impostos do vício. Aqui combate-se pela moralidade da alma e do corpo, com grande convicção do Fisco. Só é pena que os intérpretes desse combate pela “moderação fiscal” aumentando os impostos, não tenham o hábito de não mentir. É feio, mas cá por casa tornou-se tão corrente que já não se dá por ela a diferença. Acho aliás que, quem disser uma verdade, é que vai parecer que está a mentir. Sim, meu caro Ludwig, somos nós que estamos verdadeiramente nos antípodas, a andar com a cabeça para baixo. 

Poupe-te pois a mais novas, que seriam aliás antigas e más. Nós por cá todos bem. Já não temos BES, só Novo Banco, já não temos governo, só um conglomerado de pessoas que se reúne às quintas-feiras, já não temos “jóias da coroa”, nem PT, nem Bava, nem anéis e vamos a caminho de vender os dedos aos chineses. Será que há alguma mezinha de farmacopeia oriental com “dedos portugueses em pó” para tratar de algum mal pernicioso? Já não temos economia, nem ensino, nem justiça. Já não temos “fanatismo orçamental”. Ri-te. Já não temos país, só nome. Passa por cá no teu regresso à Austrália, somos a última praia antes do Oceano, a seguir a Espanha e antes de sobrevoares Casablanca.

É. Nós por cá todos bem. Mas traz a flauta e uma garrafa de schnaps. As pessoas são boas, estão é muito estuporadas. Um abraço deste teu amigo

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]