ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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6.7.13
O NAVIO FANTASMA (12)
Já repararam que em todas as discussões sobre o novo governo, não tem nenhum papel a condição social dos portugueses, as suas dificuldade, o empobrecimento, o desemprego, tudo que diz respeito ao sofrimento dos homens comuns? Fala-se em economia, mas é das empresas que se fala, fala-se de política, mas é do jogo partidário que se fala, fala-se de quem ganha e quem perde, mas é como se fosse futebol. Este vazio é o mais dramático sinal da captura da política portuguesa por interesses e por um discurso público superficial e dominado pela gramática do poder.
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O NAVIO FANTASMA (11)
Agora virá o spin e os briefings podem recomeçar. Os nossos intelectuais no governo vão-nos explicar que tudo isto mostra a "liderança do Primeiro-ministro" (se quem mandar neles for Passos Coelho), e como um governo "renovado" voltado para o "crescimento" vai fazer "arrancar a economia (se quem mandar neles for Portas)". No mundo real virá o novo plano de austeridade conhecido como "reforma do estado", o mais grave de todos.
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O NAVIO FANTASMA (9)
Se Portas voltar ao governo, para além das evidentes questões de carácter, notar-se-á que saiu como ministro e entrará como subsecretário de estado, qualquer que seja o título que se atribua. Se alguma vez pretender exercer mais do que o seu poder nominal, teremos mais uma crise política. Se ficar calado e quieto, apenas a vender a sua imagem, coisa que todos lhe permitirão fazer com cada vez menor preocupação devido ao estado calamitosa da dita, então a "solução" governativa será mais "estável". (url) (url) Vejo com alguma ironia o esforço de Poiares Maduro e Lomba de darem uma “política de comunicação” a este governo. Reconheço no seu esforço alguma coisa que já há muitos anos ingenuamente tentei, com as mesmas ilusões que eles têm, tendo como resultado um desastre completo. Nos meus primeiros anos do Parlamento, pensava que faltava ao Governo de Cavaco Silva uma “política de comunicação”, coisa aliás entendida como bizarra pelo PSD da altura, que considerava que mais importante do que aquilo que aparecia nos jornais era a relação “orgânica” com o povo português. Barbosa de Melo tinha teorizado essa dicotomia numa reunião do partido, desprezando qualquer tentativa de “esclarecer” a imprensa. Não tinha toda a razão, mas tinha alguma: a política é mais importante do que a “comunicação política”, e mesmo que nessa altura ainda existisse essa ligação “orgânica”, o papel crescente dos media, em particular a televisão, então muito incipiente, iria colocar problemas novos.
ILUSÕES
Pensava que era importante um meio para falar com os jornalistas que não fosse a combinação de pequenos-almoços reservados com directores dos órgãos de comunicação, que eram mantidos fora do conhecimento do público em grande parte porque eram um privilégio que vinha com o posto, com as fugas sistemáticas, que eram “propriedade” privadas dos jornalistas num ambiente então muito competitivo de carreiras pessoais. Pensei, com muita ingenuidade, repito, que seria possível fornecer aos jornalistas aquilo que era informação de background que não podia ser citada, mas cujo conhecimento era importante para se escrever sobre determinadas matérias.
Havia muitas razões para isto não funcionar. Os jornalistas estavam numa fase muito competitiva da imprensa escrita, queriam acesso individualizado e não colectivo, queriam “fontes” com pernas, na péssima tradição da nossa imprensa de viver de informação política anónima, ou seja, opiniões, intrigas, recados, que nenhum manual deontológico de bom jornalismo entende como sendo justificado, mas que, mesmo assim, continua a ser o cerne da informação política. Na época os jornalistas recusaram esses briefings, nas “catacumbas da assembleia” como diziam, e retrospectivamente dou-lhes alguma razão. Não toda, porque muitas vezes aquilo que não se aceitava com regras do jogo, aceitava-se com mais facilidade em fontes inquinadas e em recados. Seja como for, estávamos em tempos muito primitivos destas coisas, longe da promiscuidade actual, mas também da enorme fragilidade profissional e das redacções precárias dos dias de hoje. Hoje, esta ecologia, que era essencialmente a da imprensa escrita, já não é a mesma e o governo tem um batalhão de assessores e agências de comunicação, que tornam a relação com os jornalistas muito menos transparente.
PERIGOS
Mas o que me surpreende, é a facilidade com que hoje os jornalistas aceitam a fórmula, eles que estão sempre de boca cheia contra as “restrições” à liberdade de informação. O que acontece a um jornalista que consegue obter de outras fontes a mesma informação que lhe foi dada em off no briefing diário? Passa a ser impedido de lá ir? Como é que se mede a “autoridade” e a veracidade do que é lá dito? Como é que matérias conhecidas sob reserva podem depois surgir em perguntas em on?
Os briefings irão correr mal, por múltiplas razões facilmente compreensíveis, algumas vindas do “outro” lado, onde a experiência destas coisas não é substituída apenas pelo intelecto.
Haverá uma “linha”, “mensagens”, “recados”? Mas isso não é matéria jornalística a não ser com distanciação. O resto, as informações, é um terreno perigoso e pantanoso. Por exemplo, será dada informação sobre os conselhos de ministros, sobre posições do ministro A ou B, informações danosas obtidas por via do estado sobre a governação PS, dados sobre as posições do governo e da troika? Serão informações “positivas”, porque o governo presume-se que não será masoquista E como confirmar? E acima de tudo: como é que se pode evitar a manipulação e a endoutrinação? Os jornalistas dirão que a partir daí fazem o seu trabalho com as regras da sua profissão, mas, mesmo quando não há briefings, a tendência para aceitar a linguagem do poder é uma das maiores fraquezas da nossa comunicação social, mesmo quando parece muito de contra-poder. Por exemplo, veja-se o relato governamentalizado da primeira privatização, a da EDP, “exemplar”, “transparente”, libertando o estado de quaisquer ónus, etc, e cujos contornos só mais tarde vieram a ser conhecidos. Veja-se a tendência para designar, como o poder deseja, os cortes e despedimentos na função pública como “reforma do estado”. E muito mais. ANEXO: OS RESULTADOS DO PRIMEIRO BRIEFING EM OFF Relato típico de um jornal do briefing em off (comentarei isto no próximo Ponto Contraponto)
Isto é apenas pura propaganda.
RESULTADOS
O que vai ficar desta experiência é mais um terreno pantanoso entre o poder e os jornalistas, mas também uma potencial factor de conflito dentro do governo. Alguém acredita que Maduro e Lomba tem a autoridade e a experiência para saberem que há certas coisas que um ministro A ou B querem ou não querem que sejam ditas, em on, em off, ou em informal on-off? Muitos ministros não são meninos de coro, andam neste negócio das fugas e “recados” há demasiado tempo, nos partidos e nos governos, para não desconfiarem do voluntarismo comunicacional dos jovens propagandistas. E acima de tudo: nestes momentos de crise, nenhuma nuvem de palavras esconde o que é mau, má governação, má política, incompetência.
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O NAVIO FANTASMA (8)
Aí vem uma enorme onda de spin: depois da crise, tudo vai ficar melhor.
A primeira coisa que ficará garantida com essa "melhoria" é o próximo e muito duro pacote de austeridade, a quem se chama, em linguagem orwelliana, "reforma do estado". Toda a crise foi sobre isto e só sobre isto. Isto é que é a realidade, mas falar-se-á muito mais no spin da virtualidade, a "economia". A mentira vai continuar. Impante.
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O NAVIO FANTASMA (7)
A demonização das eleições é um dos traços autoritários mais preocupantes dos dias de hoje. As eleições são apresentadas como sinónimo de um "país que pára", um acto inútil "porque tudo fica na mesma", um enorme desperdício de dinheiro a evitar a todo o custo. Ouvindo com atenção os argumentos hostis à possibilidade de eleições imediatas percebe-se que eles não dizem respeito apenas à antecipação de eleições no actual contexto de crise, mas a todas as eleições, às eleições de per si. São, no seu entender, um momento anti-económico e um obstáculo a que o país "trabalhe" e "ande para a frente". A questão tem a ver com a ideia de que a democracia é uma perturbação inaceitável, ou apenas aceite no limite da condescendência, para um ideal de funcionamento tecnocrático, aplicado por uma burocracia "racional", a mando de não se sabe de quem.
PS: Os mesmos que se queixam de que, se houver eleições, "o país pára oito meses" (uma patetice sem qualquer correspondência com a realidade), andam há muito a prometer que encurtam os prazos eleitorais na lei, e, de legislatura em legislatura, não tomam nenhuma iniciativa nesse sentido, mantendo prazos e tempos de campanha excessivos.
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O NAVIO FANTASMA (6)
Há crises úteis e crises inúteis. Com todos os riscos, eu penso há muito que uma crise pode desbloquear os impasses políticos do país, melhorar as condições de negociação com a Europa (a história está cheia de exemplos deste tipo), e travar um caminho que dará cabo do Portugal que há, sem o substituir por nada que não sejam os seus escombros.
Depois há crises puramente inúteis, como será esta se tudo continuar na mesma. Se for esse o caso, há duas pessoas a quem tem de se apresentar a factura da bolsa e dos mercados do dia de ontem, hoje e seguintes: Portas e Passos. E veremos se o Presidente não se junta ao grupo. Isso significa que Portas e Passos delapidaram nestes dias recursos do país ao nível dos piores meses de Sócrates.
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O NAVIO FANTASMA (5)
Apesar de Navio ser Fantasma, há uma regra básica que se aplica: os mortos não ressuscitam. Podem vaguear pelas sombras do mundo, podem procurar um porto inexistente, podem assombrar os vivos. Mas o governo está morto, mesmo que não esteja enterrado. Podem colocá-lo de pé com um andaime nas costas, injectá-lo com formol, pintá-lo com cera, empalhá-lo, mas morto está e vai continuar a estar. E não é um espectáculo bonito de se ver.
Ah!, e os célebres mercados sabem disso...
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O NAVIO FANTASMA (4)
Se o Presidente decidir dissolver a Assembleia e o fizer o mais cedo possível, recusando o apodrecimento da situação que o Primeiro-Ministro alimenta, ganha alguma margem de manobra para exigir ao PS, PSD e CDS alguns acordos mínimos para o período de gestão até às eleições. Pode inclusive esforçar-se para alargar esse acordo ao PCP, BE, centrais sindicais e patronais. È mais fácil fazê-lo no quadro de uma decisão de convocar eleições do que mantendo a actual situação, onde tudo continua bloqueado.
Toda a gente já percebeu que haverá eleições, incluindo os mercados, pelo que a estabilidade hoje passa pela clarificação eleitoral. A não ser que os receios de eleições ocultem apenas o medo dos seus resultados. (url)
O NAVIO FANTASMA (3)
Nestes dias o debate público vai estar muito turvo. Vai misturar justificações, explicações, mistificações, e muito pseudo-argumentário já com intenções eleitorais. Convém por isso dizer algumas coisas com a máxima clareza possível.
Por exemplo: muita gente pediu eleições antecipadas, exigiu eleições antecipadas, considerou racional haver eleições antecipadas, desejou eleições antecipadas. Mas quem provocou eleições antecipadas foi Passos Coelho e Paulo Portas, o PSD e o CDS.
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O NAVIO FANTASMA (2)
É preciso muito cuidado em aceitar pelo seu valor facial tudo o que se anda por aí a dizer. O Navio Fantasma vai ser assim, muita mentira, desespero, muito desespero com carreiras e resultados eleitorais. Alguém mentiu a Portas. E vice-versa. Alguém mentiu a Passos Coelho. E vice-versa. Alguém mentiu a Cavaco Silva. Alguém mentiu a todos nós. Alguém mentiu e mente aos portugueses. Já estamos em eleições.
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O NAVIO FANTASMA (1)
Querer manter a todo o custo o governo em funções é a pior estratégia para os interesses nacionais face "aos nossos credores". Não o perceber é típico da actual incompetência institucionalizada. Se Passos Coelho pensa que faz a ferro e fogo um "ajustamento" contra tudo e contra todos e que é isso que "os nossos credores" querem, está completamente enganado. Não só "os nossos credores" não confiam hoje na sua capacidade política de o fazer, como, depois da situação criada pela dupla demissão de Gaspar e Portas, os "nossos credores" o que vão exigir é que os três partidos PSD, CDS e PS façam um novo acordo.
As condições políticas para esse acordo não existem sem eleições, e ninguém imagina que o CDS e o PS possam hoje ter vontade política para fazer esse acordo, durante a troika e no pós-troika. E um governo isolado, bloqueado e a cair aos bocados, é a última coisa que pode acalmar os "nossos credores". Amanhã eles já estarão noutra, mesmo que não o digam. Por cá, a cegueira funciona assim. (url) (url)
O MATERIAL TEM SEMPRE RAZÃO (24): COUVES NÃO DÃO ROSAS
O material tem mesmo razão. Couves não dão rosas. Durante dois anos escrevi, o que escrevi. Está registado. Não me surpreendo com nada do que está a acontecer. Há muito tempo que vivíamos numa situação de quase ilegalidade e de anormalidade das instituições. Houve quem desculpasse tudo; houve quem jurasse que isto nunca aconteceria apenas porque desejava que não acontecesse, o que não é bom método de análise; houve quem, no exercício das suas responsabilidades, não quisesse ver que não existia um normal funcionamento das instituições, a começar pelo governo. E ainda vai ser pior.
O material tem sempre razão.
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HUMANISMO
Comecei a minha formação
política activa como "anti-humanista". Preciso já duas distinções: uma
entre "formação política activa" e o seu corolário de "formação política
passiva"; e, depois, que "anti-humanismo" era esse.
Quando se lê
muito, e eu fui feito pela leitura e não pelo estudo - porque nunca
verdadeiramente estudei no sentido escolar do termo, e não "fazia os
trabalhos de casa" -, aprende-se e forma-se. Aliás, este é o cerne da
educação no sentido clássico, hoje tão esquecido, o de aprender para se
fazer. O livro de Werner Jaeger sobre a paideia grega era então de
leitura obrigatória para qualquer aprendiz de filosofia, e explicava bem
essa parte "passiva", interior, aberta às influências e às seduções,
quer do pathos, quer do ethos, quer do logos. Essa
formação "passiva", a que nos faz, é, pela sua natureza, caótica,
depende do "monstro", que alimentamos à força dos livros, e do modo como
eles atingem a vida que se tem. Mas uma vez feita, fica lá para sempre.
"Passiva", aqui nada tem de negativo, mas de silêncio interior
perturbado apenas pelo som da nossa voz íntima falando connosco
próprios. Freud sabia o que isso era, Proust também e, lá longe, na sua
fantasmática Konigsberg, Kant procurava-a como alicerce para essa "razão
prática" que fundamentava tudo.
Depois, a uma dada altura, dá-se
a volta, e a enorme presunção adâmica que os intelectuais têm fá-los
escrever. Escrever, nos anos sessenta, por esta ordem: poemas, "teoria" e
romances. Hoje, a ordem está alterada: os poemas estão lá, mas com
menos peso, depois ficam as escritas fáceis (e quase sempre débeis) dos
blogues e Facebook, e depois romances, romances, romances. Esta ordem
das coisas é para mim um mistério, como é que uma pessoa de juízo normal
pensa que os pode escrever com facilidade.
Nem Agustina, que é
uma grande escritora, foi capaz de construir personagens, como faziam
Camilo e Eça, quanto mais gente que dificilmente vive para lá da Time Out.
Hoje qualquer intelectual moderno, a começar por esses paradigmas da
modernidade mediática que são os jornalistas, resolve escrever romances,
para aumentar a ocupação de espaço em livrarias que parecem mostruários
de uma espécie de papel pintado entre o lânguido e forte com
personagens evanescentes na capa. Nesse contexto, eu prefiro o genuíno,
as Sandálias de Prata, da Cristina Caras Lindas.
Mas deixemos os costumes modernos. Nos anos sessenta, em particular depois de 1968, vivia-se uma outra moda, se é que assim se pode chamar, em que a "teoria" tinha um papel central. Foi nesse ramo que eu fiz a parte "activa" da formação política, ou seja, presumi ter alguma coisa a dizer, ou a redizer, sobre a teoria política consumida nesses anos. Essa presunção continuou depois do 25 de Abril, felizmente estiolando logo a seguir. Tudo isto culminou na minha grande tentativa teórica, começada por volta de 1975-6, no rescaldo do PREC, alterada todos os dias, acrescentada e corrigida, feita sobre a forma de "teses" numeradas. Durou até ao início da década de oitenta e foi então ingloriamente abandonada para sempre. Era o "luto" de um tempo, e tudo tinha mudado.
Era,
como convinha, uma "teoria de tudo", uma espécie de ensaio gnoseológico
destinado a explicar a natureza de todas as coisas, numa série de
densas afirmações. Eram tributárias de um mesmo tipo de tentativa que
Ernest Mandel fizera no seu tratado de economia, em que pretendia
"actualizar" Marx com as mais recentes aquisições da ciência, seja da
antropologia, da economia, da sociologia, da filosofia e das ciências da
natureza. Não era bem o que Engels já tinha feito no seu tempo, com o
resultado desastroso que conhecemos, mas a intenção era a mesma:
acentuar os fundamentos "científicos" do marxismo, logo do comunismo,
logo da política. Na sua presunção, era na época o equivalente a
escrever um romance qualquer nos dias de hoje.
E era
"anti-humanista". Estávamos ainda em tempos da moda intelectual que
marcou esses anos, o estruturalismo. No meu caso, e mesmo no caso
português, por razões políticas, mais Althusser do que Foucault. Louis
Althusser, que veio a morrer meio doido, meio lúcido, depois de matar a
mulher, teve uma enorme influência intelectual nesses anos porque
forneceu o produto certo para a época certa. Era um produto ambíguo,
vindo de quem era e indo para quem foi. Althusser foi sempre um fiel
membro do PCF, mas forneceu o arsenal teórico para um upgrade do
estalinismo, que teve sucesso nos meios maoístas do esquerdismo francês e
português. Nenhum destes termos, "ismos", e actores pode ser confundido
ou sobreposto. São tudo coisas diferentes e com consequências
diferentes, nem o PCF era um partido comunista qualquer, nem o maoísmo
era um estalinismo tout court, nem os "meios maoístas" eram assim tão homogéneos como as generalizações de hoje pressupõem.
O
estruturalismo, de Althusser em particular, traduziu-se na sua leitura
da obra de Marx, que partilhou com um conjunto de colegas e discípulos
como Étienne Balibar, Roger Establet, Pierre Macherey Jacques Rancière,
Alain Badiou, alguns dos quais autores ainda hoje muito influentes no
esquerdismo contemporâneo. A sua tese partia de uma "cesura", termo
corrente na época e com origem na obra de Gaston Bachelard, o
trabalhador dos correios-filósofo, entre o Marx "humanista", anterior a
1848, hegeliano, e o Marx marxista, "anti-humanista". O resultado é que o
filósofo do PCF fornecia a teoria de que os jovens intelectuais
maoístas precisavam para se demarcarem exactamente do "humanismo" dos
partidos comunistas pró-soviéticos, e retomarem um marxismo puro e duro,
limpo da decadência revisionista e de Hegel. Ilusões há muitas.
Na
época, estas ideias eram ardorosamente discutidas, numa paixão
intelectual a que os dias de hoje são de todo alheios. Lembro-me da
polémica feroz que opôs Eduardo Prado Coelho, estruturalista e
"anti-humanista", a Vergílio Ferreira, existencialista e humanista. E da
sala apinhada no Centro Nacional de Cultura para discutir a obra de um
discípulo de Claude Lévi-Strauss, Lucien Sebag, intitulada Marxismo e Humanismo, hoje quase esquecida. Ou da discussão suscitada pelo prefácio às Palavras e as Coisas, de Foucault, igualmente inimaginável nos dias de hoje.
Quase
tudo acontecido antes do 25 de Abril, mas que conheceu depois
desenvolvimentos perversos, com Eduardo Prado Coelho, então militante do
PCP, a justificar o projecto de censura de Correia Jesuíno, e com os
estruturalistas, discípulos de Althusser, a levarem o seu anti-humanismo
a uma linguagem de pau, mais rígida do que a dos PC e, por fim, a
baterem contra a parede. O meu ambicioso tratado de gnoseologia
estruturalista ficou por esse caminho, atingido no seu coração "teórico"
por leituras como a de Popper, em particular no The Poverty of Historicism,
ou a de Kolakowski, que fizeram os devidos estragos. Verdade seja que
me recordo de sugerir ao João Carlos Espada a leitura de Popper... Mas,
como diz Dante no "Purgatório", a propósito de Pia de Tolomei: "Siena mi fé, disfecemi Maremma", os livros me fazem e desfazem. E os tempos mudaram e bem.
Por
que é que me recordei de toda esta arqueologia? Porque hoje se percebe
muito bem a falta que faz, mais do que o "humanismo" como sistema, a
falta de uma atitude humanista. Nestes dias do lixo, o desprezo pelo
"humano" concreto tornou-se a regra e, de uma ponta a outra do nosso
mundo quotidiano, varreu-se a preocupação humanista não só da política
como de muitos outros aspectos da nossa vida. A tecnologia é usada, numa
sociedade cada vez mais pobre, para criar novas exclusões. Valores
civilizacionais como a privacidade e a intimidade são dissolvidos na
"facilidade" do Facebook. O universo público mediatizado gera uma
cultura de superficialidade e ignorância presumida. Os valores não
circulam numa sociedade que vive na moda e na novidade. Todas as
mediações, dificilmente construídas pela luta cultural consciente dos
homens para viverem sem ser na selva, estão em crise.
E a
política em democracia perdeu esse sentido de melhoria da vida dos
homens comuns, da "felicidade terrestre", na única vida que conta para a
democracia, que é a vida na Terra e não a eterna. A demagogia que
sacrifica o presente em nome de um futuro construído ao sabor dos
interesses desse mesmo presente reconstrói a ideia de que a salvação
está outra vez num paraíso celeste, agora prefigurado nos "nossos filhos
e nos nossos netos", em nome de quem a vida das pessoas que existem,
tenham um dia ou cem anos, é desprezada.
Eu sei que são velhas
queixas, muitas vezes repetidas. Mas talvez tenha sentido repeti-las
para renovar dia a dia, ano a ano, uma pulsão humanista que, se pode não
fazer uma vida melhor, pode pelo menos fazer-nos melhores.
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© José Pacheco Pereira
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