Agora, todos os que amavam a troika de amor total, sensível, arrebatado, e lúbrico, detestam a troika, dirigem-lhe os maiores impropérios e querem pô-la fora da habitação do casal. Há várias razões para isso: já não falta entrar muito dinheiro dos 78 mil milhões decididos, já está combinado em termos gerais como é que a assistência e o protectorado continuam depois da troika ir embora, e vai haver eleições para as quais ninguém “se lixa”
A troika ir-se-á embora fisicamente em Junho de 2014. Haverá festas, champanhe, foguetes e o governo usará essa saída da troika como um dos escassos trunfos eleitorais que tem para 2015. Mas, fora da propaganda, nem a troika se vai embora, nem os objectivos do memorando foram conseguidos. Aliás, a enfâse no pós-troika significa isso mesmo: a constatação do falhanço do memorando, de que nenhum objectivo nem do défice, nem da dívida, foi cumprido, contrastando com o zelo “para além da troika” na austeridade dos trabalhadores e pensionistas, e nas leis laborais, no desmantelamento do estado e parcialmente nas privatizações
Um retorno sustentado aos mercados é irrealista sem protecção europeia e o preço a pagar para essa “protecção” implica a manutenção do regime de protectorado de Bruxelas e Berlim, mesmo sem as visitas regulares da troika. Em vez de ter periodicamente o espectáculo da submissão, com o espavento da chegada ao aeroporto, das idas aos partidos, à Assembleia, ao Presidente e às instituições, uma outra troika invisível nos inspecionará na mesma de um ou vários gabinetes em Bruxelas e Frankfurt. Para isso, exige-se um governo de ocupação e partidos colaboracionistas, que aceitem o mesmo tipo de supervisão alheia sobre o parlamento português, sobre a liberdade dos partidos e das eleições. Este é que é o problema do pós-troika e é eminentemente um problema político e de soberania.
Já falei o suficiente sobre a greve dos professores, para não precisar de aqui voltar. Também me parecia imbecil, se não fosse intencional, quer por ignorância mediática, quer por má fé, estar agora a entrar naquilo que os jornalistas referem com desprezo como a “guerra dos números” (que eles fomentam mais que ninguém, para depois se enojarem com a sua existência), nem com “quem ganhou ou quem perdeu”, nas suas múltiplas variantes propagandísticas, retóricas e mediáticas.
O que me interessa é o que a greve e as reacções à greve revelam sobre o tónus de conflitualidade na sociedade portuguesa, latente e às claras. Não tenho dúvidas de que dentro das escolas, pela primeira vez com esta intensidade, os professores que fizeram greve, e que são uma grande maioria, olham para os que não a fizeram de forma bem pouco meiga. Um profundo mal-estar divide professores de diferentes ciclos, onde o ministério encontrou em alguns sectores um grupo de professores dispostos a irem para escolas, que não são as suas, fazer a vigilância de exames.
Foram muito poucos, mas para garantir os exames bastaram. Colocou, também pela primeira vez, em cheque o papel dos directores. Alguns assumiram-se como “chefes” das escolas e foi deles, encostados às pressões governamentais, que vieram muitas das ilegalidades cometidas no dia da greve. Alunos e pais, os alvos da propaganda governamental, dividiram-se profunda e agressivamente. Os incidentes nas escolas, com alunos a tentar impedir outros alunos de fazerem exames, e o modo como a questão da “equidade” se tornou uma reivindicação, que, essa sim, atinge apenas o governo, vai manter o estado de excepção em todo este processo de exames.
Revelou também a hostilidade comunicacional às greves e aos sindicatos, com noticiários e comentários hostis, por regra. O modo como os responsáveis governativos eram interrogados era muito mais dócil do que a agressividade face aos sindicalistas, quase sempre apresentados à cabeça como “culpados”. De um modo geral, o leitmotiv da propaganda do governo – os exames prejudicam gravemente os alunos – foi repetido à exaustão. Subitamente descobriu-se um país de famílias “angustiadas”, de estudantes “nervosos”, de “ansiedade” por todo o lado. Um exército de psicólogos e de psiquiatras deve mobilizar-se sempre que há exames, porque os frágeis estudantes (os mesmos frágeis estudantes a quem se pode perguntar o que é que eles fazem aos professores e entre si durante todo ano) estavam todos deprimidos. Há muitas razões para este comportamento dos jornalistas, em contraste com a simpatia com as manifestações dos “indignados”, mas ficam para outra altura.
Por fim, e de um modo geral é isto que fica, é que a greve revelou de forma muito clara o modo como a conflitualidade está a evoluir para formas mais agressivas. Ela representa, entendida em todas as suas manifestações nos professores, alunos e pais e governo, o erro da afirmação do Presidente da República de que não há “desestruturação” na sociedade portuguesa. No dia da greve todo o discurso de divisão e de guerra civil que o governo tem vindo a semear, está já bem enraizado, e os seus efeitos geram “lados”, acicatam confrontos e dividem os portugueses cada vez de forma mais devedora ao pathos do que ao logos. É um caminho perigoso.
O que está em causa para o
Governo na greve dos professores é mostrar ao conjunto dos funcionários
públicos, e por extensão a todos os portugueses que ainda têm trabalho,
que não vale a pena resistir às medidas de corte de salários, aumentos
de horários e despedimentos colectivos, sem direitos nem justificações, a
aplicar a esses trabalhadores. É um conflito de poder, que nada tem a
ver com a preocupação pelos alunos ou as suas famílias.
Há mesmo
em curso uma tentação de cópia do thatcherismo, à portuguesa, numa
altura em que uma parte do Governo pende para uma espécie de gotterdammerung revanchista
e vingativo, de que as medidas ilegais como a recusa do pagamento do
subsídio de férias pela lei em vigor são um exemplo. Não é porque não
tenha dinheiro, é porque quer mostrar que é o Governo que decide as
regras do jogo e não os tribunais e as leis. Qualquer consideração pelas
pessoas envolvidas, não conta.
O Governo sabe que a sua
legitimidade é contestada sem hesitações por muita gente, e pretende
ultrapassar com um exercício de autoridade essa enorme fragilidade. Por
isso, a greve dos professores é muito mais relevante do que o seu
significado como conflito profissional, e é também por isso que o
Governo, aproveitando o deslaçamento que tem acentuado na sociedade com o
seu discurso de divisão, usa pais e alunos para a combater. Não é
líquido que não possa ter resultados, até porque os sindicatos não têm
conseguido ter um discurso límpido e claro, e os professores que se
mobilizaram quase a 100% contra Maria de Lurdes Rodrigues, por causa da
avaliação, estão hoje muito mais encostados à parede e enfraquecidos.
O
medo dos despedimentos é muito perturbador no actual contexto de crise
social, em que quem perde o trabalho nunca mais o vai recuperar. Por
isso, a greve dos professores, como a greve dos funcionários públicos, é
pelo emprego, em primeiro lugar, em segundo lugar e em último lugar. É
também contra a imposição unilateral de condições de trabalho e horários
no limite do aceitável. Mas o emprego é hoje o bem mais precioso e mais
ameaçado. Aliás, o aumento do horário de trabalho é também uma medida
para facilitar o desemprego.
Os sindicatos são um instrumento
vital de resistência social em tempos como os de hoje, e é ridículo e
masoquista ver alguns professores a "esnobarem" dos sindicatos quando
mais precisam deles. No entanto, isto não pode fazer esconder que os
sindicatos estão longe de estarem à altura do momento que o mundo
laboral está a atravessar. É aliás aqui que os efeitos mais perniciosos
da dependência partidária do movimento sindical português mais se
manifesta, quer para a CGTP, quer para a UGT.
Num momento em que
existe uma ofensiva em primeiro lugar contra os funcionários públicos e,
depois, contra qualquer forma de resistência organizada dos
trabalhadores, ou seja, também contra os sindicatos e os direitos
laborais, substituir uma acção próxima dos mais atingidos por uma
tentativa de lhe dar cobertura com slogans políticos é um erro que se paga caro.
Não adianta virem usar slogans,
como seja a "defesa da escola pública", apresentando-os como a
principal razão de luta dos professores. Em casa em que não há pão,
ninguém se mobiliza por abstracções, mobiliza-se pelo pão. É verdade que
o Governo é contra a "escola pública", mas o seu objectivo fundamental
nestes dias é despedir funcionários públicos, incluindo os professores,
para garantir os cortes permanentes da despesa pública a que se
comprometeu, em grande parte porque, ao ter deprimido a economia no
limite do aceitável, não tem outro modo de controlar o défice. Se o
escolhe fazer nos mais fracos e dependentes da sua vontade, como sejam
os funcionários públicos, é relevante, mas até por isso é a balança de
poder que está em causa nas próximas greves.
A utilização de uma
linguagem estereotipada pode ser muito confortável do ponto de vista
ideológico, mas funciona como entrave quer à mobilização profissional,
quer à mais que necessária mobilização da sociedade. Não é pela "defesa
da escola pública", nem por qualquer objectivo assim definido
programaticamente, que a greve pode ter sucesso, em particular face à
ofensiva governamental que conta com muito mais apoio na comunicação
social do que se pensa. É pela condição do trabalho, pelo emprego, que,
no actual contexto, são muito menos egoístas do que podem parecer. É,
aliás, também nesse terreno que os funcionários públicos e os
professores podem e devem "falar" com todos os outros trabalhadores do
sector privado, porque aí os seus objectivos são comuns.
O que
parece que os sindicatos têm vergonha de enunciar é o seu papel de
defesa de um grupo profissional, como se os objectivos laborais não
fossem objectivos nobres de per si, ainda mais na actual tentativa de
criar uma sociedade "empreendedora", assente na força de poucos contra o
valor e a dignidade do trabalho de muitos. A incapacidade que tem a
esquerda de enunciar objectivos firmes no âmbito destes valores,
substituindo-os por uma retórica abstracta, acaba por resultar numa
falsa politização que se torna num instrumento espelhar do mesmo
discurso de divisão que o Governo faz. Ainda estou à espera que alguém
me explique por que razão não se diz preto no branco, sem bullshit,
que a greve é justificada pela simples motivo que nenhum grupo
profissional numa sociedade democrática, seja empregado de uma empresa,
ou do Estado, pode aceitar que se lhe torne o despedimento trivial, por
decisões que são de proximidade (os chefes imediatos), e que não têm que
ser justificadas a não ser por uma retórica vaga de "reestruturação",
um outro nome para cortes cegos e pela linha da fraqueza dos "cortados".
E também não se diz, sem bullshit,
que não é fácil manter a calma e a civilidade quando se tem que
defrontar do lado das negociações pessoas que mentem quanto for preciso,
e que estão apenas a ver se meia dúzia de mentiras ou ambiguidades
servem para passar a tempestade e voltar à acalmia que precisam para
fazerem tudo aquilo que hoje dizem que não vão fazer. Os mesmos que, nos
últimos dois anos, tudo prometeram e nada cumpriram e que ainda há
poucos meses juravam em público que nada disto iria acontecer. Ou seja,
gente não fiável, de quem se pode esperar tudo e cujo discurso nas suas
ambiguidades deliberadas está a ser feito para que tudo seja possível.
Em Agosto ou em Setembro, passada a vaga de conflitualidade social, vão
ver como milhares de pessoas vão para a "requalificação", como o aumento
dos horários de trabalho vai servir para tornar excedentária muita
gente e como, sejam professores ou contínuos, todos vão estar no mesmo
barco do olho da rua.
Eu continuo a achar que a decência mobiliza
muito mais do que a "escola pública" e que tem a enorme vantagem de
toda a gente perceber quase de imediato o que é. E tem ainda a vantagem
de ser fácil explicar, e de ser fácil de compreender por toda a gente,
que é indecente o que se está a fazer aos funcionários públicos e aos
professores. E assim socializar o mesmo tipo de revolta que muitos dos
actuais alvos do Governo sentem, porque ela não é diferente da que tem
muitos milhões de portugueses. Digo bem, milhões. Não é coisa de
somenos.
NOTA: à data em que escrevo (14 de Junho)), não sei ainda quais vão ser
os resultados dos encontros entre o ministério e os professores, mas,
sejam quais forem, o contexto é este. No actual momento da sociedade
portuguesa, ou se ganha ou se perde. Não há meio termo.
QUE EFEITOS TEM O DISCURSO DE GUERRA CIVIL DO GOVERNO?
VEJAM O QUE SE ESTÁ A PASSAR NO DIA DE HOJE NAS ESCOLAS
O reino dos céus é semelhante ao homem que semeou boa semente no seu campo; mas, enquanto os homens dormiam, veio o inimigo dele, semeou joio no meio do trigo, e retirou-se. Quando, porém, a erva cresceu e começou a espigar, então apareceu também o joio.
"ELES" (OS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS) SÃO UMA PARTE DE "NÓS"
A thing moderately good is not so good as it ought to be. Moderation in temper is always a virtue; but moderation in principle is always a vice.
(Thomas Paine)
O que se passa na actual
ofensiva do Governo contra a função pública está muito para além da
condição de se ser "funcionário público". O discurso do Governo - mais
uma vez um discurso de divisão entre os portugueses, a que chamei e
chamo "guerra civil" - pretende legitimar as suas acções como tendo a
ver com aquilo que apresenta como "privilégios" dessa condição
profissional. Os corolários são sempre os mesmos; está-se a atacar
privilegiados, cujos privilégios são pagos pelos dinheiros dos
contribuintes, em nome da "equidade". Se temos impostos altos é porque
esta gente "do Estado" tem o emprego garantido, ganha mais do que os
trabalhadores do sector privado, tem maiores reformas. Tudo em parte
verdade, tudo em absoluto mentira.
Este discurso colhe, porque as
sementes da cizânia pegam sempre em momentos de empobrecimento, em que a
mais fácil das cegueiras é olhar para o lado e ver que o vizinho tem
mais uns tostões do que eu e ficar fixado nessa socialização da inveja
entre os de baixo, muito próximos em condição e dificuldades, em vez de
olhar para outro lado, para o lado de onde vem a minha miséria e a do
meu vizinho. Para o lado de cima.
O que se passa com a função
pública é relevante para todos nós, como método, como sinal, e,
infelizmente, como imoralidade social, rompendo um contrato social que é
suposto ser o tecido da nossa sociedade em democracia, em que existem
diferenças e diferenciações aceitáveis e outras inaceitáveis. É porque o
Governo quer esconder as inaceitáveis que assume agora uma espécie de
igualitarismo para os imbecis, proclamando-se de uma rasoira igualitária
que serve para violar contratos e garantias, direitos e condições, em
nome de um "dinheiro" que não há nestes casos e que parece haver sempre
nos outros. Alguém disse esta semana, e bem, que nunca ouviu o Governo
responder que "não havia dinheiro" para as PPP, nem para os contratos swap, nem para a banca, só para os trabalhadores e para os reformados.
É
por isso que o que o Governo está a fazer aos funcionários públicos tem
um significado social muito mais vasto do que as peculiaridades do seu
estatuto social e profissional. E o invólucro de uma pseudo-"reforma do
Estado" é apenas a expressão orwelliana para mais um corte cego nos
serviços públicos, sem nexo, sem consistência, nem sustentação, sem
sequer corresponder a qualquer poupança estrutural, porque os custos das
coisas mal feitas são muito maiores do que a poupança orçamental obtida
a curto prazo.
Um dos aspectos mais inaceitáveis deste processo é
o grau de dolo e fraude em que ele é feito. Repito-me, mas este é um
dos aspectos mais repulsivos da actual governação. Todos os governantes
juraram várias vezes, há dois anos, e há dois meses, que nunca haveria
despedimentos na função pública, nunca haveria "mobilidade especial"
para os professores, e que apenas quem quiser sair teria abertas as
portas a "rescisões amigáveis". O que ofende mais a consciência comum é
que as mesmas pessoas que usaram o "nunca", várias vezes e em contextos
que não permitiam a ambiguidade, estão hoje na vanguarda de piruetas
verbais mais obscenas para se desdizerem, parecendo aliás muito pouco
preocupados com o valor da sua palavra.
Quando se justificaram, no
passado próximo, muitas medidas de cortes salariais na função pública
com o argumento de que podiam ser mais gravosas para os funcionários
públicos, visto que eles tinham "a garantia do emprego", o que se estava
a fazer era mentir a todos, como método de actuação. O mesmo dolo foi a
"mobilidade especial" e agora a "requalificação" que não são mais do
que classificações enganosas em burocratês para os despedimentos. O
despedimento de funcionários públicos estava inscrito no código genético
desta governação desde o primeiro dia. Escrevi-o na altura com absoluta
certeza de que iria ser assim. E foi.
Tudo isto nos diz
respeito, funcionários ou trabalhadores do sector privado, porque
ninguém tenha dúvidas de que se o Governo pudesse fazer a todos os
trabalhadores portugueses o mesmo que está a fazer aos funcionários
públicos, fá-lo-ia sem hesitar. Se, por despacho ou lei ordinária, em
muitos casos sem sequer ir à Assembleia da República, fosse possível
aumentar o horário de trabalho, permitir despedimentos discricionários
por decisão unilateral do patrão ou do capataz, individuais e
colectivos, sem qualquer enquadramento legal que proteja a parte mais
fraca, nem simulacros de leis laborais seriam precisas.
E tudo
isto nos diz respeito, porque é o medo o lubrificante do discurso de
guerra civil do Governo. Sim, o medo das pessoas normais, que sabem que
ninguém as defende, que não confiam na força dos sindicatos, que sabem
que o silêncio cúmplice de Seguro não destoa dos actos de Passos Coelho,
que sabem que se escorregarem ainda mais no plano inclinado da pobreza,
cujo grande salto é o despedimento, terão uma vida infernal, difícil e
envergonhada. E por isso hesitam, temem, retraem-se, têm a ilusão de que
podem passar despercebidos ao olhar do chefe que vai escolher quem vai
para a "mobilidade especial", ou para a "requalificação", ou seja, quem
vai ser despedido.
A razão pela qual o povo português parece ser
mais "paciente" resulta muito simplesmente de que muitos têm medo de
perder ainda mais do que o que já estão a perder. E como o discurso da
divisão deixa cada um sozinho na sua fábrica, na sua escola, na sua
repartição, o medo ainda é eficaz. Mas o medo é destrutivo da sociedade e
da democracia, e dá saída apenas para o desespero, o momento em que as
pessoas percebem que já não há mais a perder. E nessa altura o seu
desespero não se verá em manifestações da CGTP ou dos "indignados".
Uma
das razões por que prefiro mesmo o desconhecido e o arriscado à
situação presente, como sejam eleições antecipadas sem grandes
expectativas, é que prefiro um tumulto que abra o espaço político a uma
situação nova, à continuidade de uma governação que é uma forma muito
pior de tumulto, é a destruição de um país em que a condição de se ser
português não significa nada, porque já não existem laços comunitários
em que nos reconheçamos.
Soares apelou às esquerdas, mas com
idêntico impulso crítico podia-se apelar às direitas, no mesmo sentido
de acção contra este Governo. Quem tiver um mínimo senso patriótico e
nacional, mesmo aceitando-se o lugar-comum de que é à direita que esse
sentimento de patriotismo é mais agudo, não pode deixar de se preocupar e
muito com a obra de destruição de Portugal e do tecido que uniu até
hoje os portugueses.
O enorme falhanço da esquerda e da direita
está em querer traduzir numa linguagem estereotipada e sectária uma
realidade de devastação que em muito ultrapassa o discurso político
tradicional. Os partidos políticos que assentam em termos programáticos
numa ideia de cidadania (como o PS) ou de "pessoa humana" (como o PSD e o
CDS) estariam à partida vocacionados para, pelo menos, compreender o
que se está a passar e travar esta forma miserável de luta de uns contra
os outros que não ousa dizer o nome, mas que é muito parecida com a
"luta de classes". Mas cada um ao seu modo, nas suas lideranças, traiu
os seus programas e, por isso, está a estragar Portugal e a democracia.
Não
é irrelevante o que se está a passar, para quem seja "justo", para quem
não seja indiferente ao tónus moral e cívico de uma sociedade, com
todos os piores instintos a ser despertados e alimentados, para garantir
um terreno favorável a um projecto de engenharia política que hoje está
em decadência, mas que envenena a terra em que está a apodrecer. Se há
um princípio cívico de moralidade - e é um cínico e um relutante
defensor de argumentos morais em política que escreve isto - o que está a
acontecer aos funcionários públicos deveria fazer soar todos os sinais
de alarme.
Face a esta situação, precisávamos de gente como Thomas
Paine que nos ensinasse que a "moderação no Bem" não é uma coisa boa. E
que se a "moderação no temperamento é sempre uma virtude, a moderação
nos princípios é sempre um vício". Há momentos em que é precisa esta
intransigência.