ABRUPTO

5.10.12


COISAS DA SÁBADO: DOIS RIOS PARALELOS 


A contestação ao governo passa hoje por dois rios, caudalosos, prestes a sair das margens, mas que são distintos e paralelos. 

O RIO DE 15 DE SETEMBRO 

Um dos rios, o mais caudaloso, mas sem foz à vista, fazendo o seu leito de cheias e secas, é o das manifestações como a de 15 de Setembro, apenas comparável á que antecedeu a queda do José Sócrates, conhecida como a da “geração á rasca”. O mito diz que foi convocada nas redes sociais, mas a realidade é que foi convocada pelos jornais e pela televisão, pela activa e militante simpatia de muitos jornalistas com um tempo de antena excepcional, e foi “convocada” porque as peripécias da TSU entre o Pedro Primeiro-ministro e o “Pedro” do Facebook, mais a logomaquia de Gaspar, encheu o copo da “paciência” do bom povo português. 

 Os jornais fazem reportagens sobre os “autores” do protesto nas redes sociais, numa típica ilusão de autoria, convencidos que foram eles que trouxeram muitos milhares de pessoas à rua. Puro engano, muitas vezes os mesmos, quando isolados do amplificador comunicacional, nem cem pessoas trazem à rua. Há muito mais manifestações falhadas com a mesma origem do que sucedidas. São os mesmos e actuam nas mesmas redes, mas os resultados são abissalmente diferentes. Aliás, se não houvesse TSU, a manifestação de 15 de Setembro seria muito parecida com outras com a mesma origem, com dificuldade em atingir um milhar. Foi assim com a manifestação anti-Relvas, com as “assembleias populares”, ou a concentração dos “defensores da cultura”, que nem cem pessoas tinha 

Mas não foi. O caso da manifestação de 15 de Setembro, o sucesso deveu-se a uma razão: foi não-partidária e mesmo anti-partidária, e foi contra a “situação”. A “situação” é tudo: TSU, troika, governo, partidos, políticos, “regime”, “sistema”, Presidente, Assembleia, deputados, comentadores, jornalistas, juízes, magistrados, tudo. Teve lá desde a extrema-esquerda até à extrema-direita, mas o grosso da multidão é apenas extrema na sua recusa do presente e na sua desesperança face ao futuro. Estão com raiva. 

É um poderoso movimento de protesto, mas no dia seguinte pode ser apropriado ilusoriamente pela mesma “situação” que tinha sido insultada e vaiada no dia anterior. Os elogios à manifestação, vindos de governantes e do PSD e do PS, soam a falso, mas traduzem, para além do oportunismo de ocasião, uma maior facilidade por parte do sistema político para “integrar” essa realidade que lhes parece inconsequente do ponto de vista político. Houve descontentamento? Certamente que houve, dirá um deputado da maioria, mas foi “pacífico” e “ordeiro” e nós podemos ouvi-lo porque não somos surdos, mas como não o encontramos nas esquinas da Assembleia, nem dentro do partido, nem em qualquer “força de bloqueio”, seja o Tribunal Constitucional, seja o Presidente, podemos fazer de conta e andar para a frente. Prestamos-lhe um elogio formal qualquer de circunstância, mas podemos passar á frente, porque não conta, não está no “sistema”, não nos ameaça. É cegueira quanto ao fundo, mas não deixa de ter alguma razão a curto prazo. 

 O RIO DE 29 DE SETEMBRO 

O outro rio está igualmente caudaloso, mas tem foz e leito e sabe muito bem o que quer e di-lo cada vez mais. A manifestação da CGTP era muito mais difícil de fazer com sucesso do que a de 15 de Setembro. Não contava com a mesma simpatia comunicacional que a de 15 de Setembro, e teve que ser sujeita a uma agenda comunicacional assente na comparação de números com a anterior. Com toda a força que tem o pensamento débil, parecia que as redacções não queriam fazer mais nada do que saber se uma era maior do que a outra, se a multidão cabia no Terreiro do Paço cuja medida “cientifica” foi contraposta á de uma Praça de Espanha, nunca medida, nem cheia. A tendência para o exagero dos números de dia 15, contrastava aqui com a minimização, e como a cabeça não dava para muito mais, não viam o muito que havia para ver de novo no dia 29 de Setembro. Da mesma maneira que elogiavam a manifestação de 15 de Setembro para a engolir, o establishment fazia de conta que a 29 apenas tinha havido um remake das sempre iguais e sensaboronas manifestações da CGTP. 

Sindicatos e CGTP são para eles “velhos”, desinteressantes e de cassete, e prestaram pouca atenção ao facto de Arménio Carlos ter feito o mais violento discurso comunista desde o PREC, a milhas do moderado Jerónimo de Sousa, dirigindo-se quase sempre aos “camaradas” e só no fim se lembrou dos “amigos e amigas”. Não viram a multidão a cantar A Internacional, não viram aquilo que foi o mais evidente sinal de uma radicalização nas fileiras do PCP desde há anos de crise. Ora isso não só é novo, como dá uma dimensão que ao governo e o poder devia suscitar as maiores preocupações. Até porque se deve ao PCP e quase só ao PCP e à CGTP o clima de “paciência” do povo português e não haver violência nas ruas. Arménio Carlos afirmou que a CGTP não permitiria violência na sua manifestação e quem lá estava sabe que isso é para tomar á letra, como sabe a polícia que confia mais no serviço de ordem da CGTP do que em milhares de efectivos. O PCP, por cultura política, despreza a violência folclórica dos esquerdistas actuais, mas é tudo menos um touro manso. 

A CGTP e o PCP estão cada vez mais a dar expressão a uma radicalidade que vem de baixo, dos locais de trabalho, seja na função pública maltratada, seja nas fábricas onde há despedimentos colectivos, seja em sectores de trabalhadores que são tratados com desprezo por administrações que estão a rasgar acordos que assinaram há um ano. Se houver greve geral podem ter a certeza que será muito mais dura. Pode até haver menos grevistas, mas os piquetes vão tomar a sua função a sério. Porque este não é o mundo das raparigas a abraçar polícias e depois andar a tirar fotografias em pose para revistas cor-de-rosa. 

 A FOZ DOS RIOS 

No dia em que a planície entre estes dois rios for inundada e as águas se juntarem numa mesma foz, a rua tornará ingovernável o país. É raro, vem pouco nos manuais, apenas nos melhores, mas está cada vez mais perto de acontecer.

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ESPÍRITO DO TEMPO:  HOJE
Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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30.9.12


POR QUE É QUE JÁ NÃO POSSO OUVIR DIZER QUE "NÃO HÁ ALTERNATIVAS"?


Há exactamente um ano, escrevi um artigo sobre as alternativas, aqui publicado em 15 de Outubro de 2011. Estava a falar, na altura, nas alternativas ao cumprimento do memorando da troika, que sempre afirmei existirem mas serem piores. Referia-me essencialmente a "prender os políticos, não pagar aos bancos, confiscar o dinheiro aos ricos e "renegociar a dívida"", propostas pela extrema-direita, pelo BE e pelo PCP, mas, como também chamei a atenção, com muito mais apoio popular do que parecia no discurso "publicado". Hoje, como dantes, continuo a pensar que estas alternativas - que não adianta tratar por outro nome, porque de facto são alternativas - conduziriam a muita miséria. E são piores porque se isso por si só não as distinguiria muito da miséria actual, implicariam a construção de um Estado autoritário, mesmo totalitário. Esse Estado, assente num populismo qualquer, à direita ou à esquerda, em nome de "os ricos que paguem a crise" ou do "combate aos ladrões dos políticos", acabaria por ter uma prática persecutória inaceitável para a liberdade.

A minha principal objecção a estas alternativas não estava na miséria que provocariam, mas no facto de conduzirem a uma violência política contra as liberdades. Não importa que essa violência seja conduzida por uma polícia fiscal ou uma ASAE musculada em nome do combate à "evasão fiscal dos ricos", por uns "comités de vingadores" quaisquer, ou pela multidão na rua. Da república de Weimar, passando pela Argentina peronista, à Venezuela chavista, não faltam exemplos. Continuo a considerar inaceitáveis essas alternativas, em nome da liberdade, mas temo que o discurso actual de que "não há alternativas" seja a principal força que as alimenta. Porque já toda a gente compreendeu que a política concreta deste Governo não é alternativa ao caos, à desordem e à miséria e, acima de tudo, vai falhar o cumprimento do memorando da troika, única fonte de legitimidade a que se tem agarrado no último ano.

Peço desculpa de me citar, mas as palavras com data têm a vantagem de mostrar como era possível prever o caminho deste último ano, sem surpresas de maior, e que quem falhou não o fez por falta de críticas a seu tempo, mas porque tinha um enorme rei na barriga e um pequeno pássaro na cabeça a pensar com 140 caracteres. Em Outubro de 2011 escrevi:
"O martelo-pilão abateu-se outra vez sobre os portugueses sob a forma habitual, impostos, aumentos de preços e reduções de salários. De cada vez que se espera que seja a última, há sempre mais uma. Por isso, a coisa mais fácil de vaticinar é que esta não será a última, e se calhar nem será a mais gravosa. (...) Está-se a caminhar para um ciclo de muito difícil saída. O que de mais gravoso o primeiro-ministro escondeu (...) é que uma parte do descalabro orçamental deste ano e do previsível para o ano já não vem dos "buracos", mas da quebra de receitas do Estado, que torna o aumento dos impostos em grande parte ineficaz. Ou seja, estamos a entrar num círculo vicioso que se pode aguentar um ano ou dois e, em seguida, ficamos "gregos"."

E também escrevi sobre os meus receios sobre a capacidade do governo, esperando, ainda assim, que pelo menos cumprisse aquilo que veio mais tarde a definir como obrigatório atingir "custe o que custar":
"(...) poderíamos desejar um outro Governo mais capaz e imaginativo, poderíamos desejar acima de tudo um Governo mais experiente e melhor conhecedor da realidade nacional, que se tivesse preparado estudando o nosso país e não atirando soluções de catálogo para agradar aos blogues liberais, que não precisasse de estar a aprender ao mesmo tempo que, em absoluto estado de necessidade, precisa do martelo-pilão em vez de um martelo mais afinado, poderíamos desejar tudo diferente, mas é este que temos e se, no final, chegar a 2012 e 2013 cumprindo os objectivos do défice, fará bem."
Não cumpriu e não o fez exactamente porque as minhas suspeitas sobre a sua incompetência e as suas ideias simples e perigosas sobre o país puderam "governar" sem efectiva contestação durante um ano, "porque não havia alternativas". O resultado seria, escrevi-o também há um ano, quando ia alto o consenso à volta da "coragem" do Governo e dos méritos de Passos Coelho, Relvas e Gaspar:
"Os propagandistas podiam poupar-nos as ilusões e a demagogia ideológica: daqui não resultará qualquer Estado mais virtuoso na sua magreza, nem nenhum país mais competitivo, nem um Portugal melhor. Sairá um país mais pobre, exausto, mais dependente, menos culto, menos qualificado, com maiores diferenças sociais, mais zangado e mais violento, e, muito provavelmente, com menos liberdades. E quase de certeza sairá com um Estado mais poderoso (...) e uma sociedade civil mais fraca."
Hoje, o discurso de que "não há alternativas" é o argumento ad terrorem do Governo e do poder. É falso, propagandístico e o seu principal efeito é cobrir tudo o que tenha origem no Governo como sendo inevitável e infalível. Serviu para justificar a meia hora de trabalho suplementar, o IVA da restauração, o aumento exponencial do desemprego, a destruição experimental de parte das nossas pequenas empresas, vistas com desprezo pelos admiradores serôdios das dot.coms e dos gadgets, alimentou o exercício do poder político forte para os fracos e débil para os fortes. Serviria para justificar a TSU se as coisas não tivessem corrido tão mal. E tornou-nos num país que exporta ouro derretido das poupanças familiares, medicamentos que faltam no mercado nacional e que vão para Angola e automóveis devolvidos porque não se conseguem vender. O negócio do ouro, excelentemente personificado num anúncio televisivo de António Sala, marca os tempos actuais como a valise en carton da emigração ou os contentores dos retornados. E tornamo-nos num país que não cumpre... o memorando da troika.

De há um ano para cá, muita coisa mudou no próprio terreno do memorando da troika, nos seus co-signatários credores, na percepção do carácter perverso da "fadiga da austeridade", abrindo novas alternativas que o parceiro português recusou in limine. Mudou o contexto europeu e mudou favoravelmente, mas o Governo português nunca usou a sua boa imagem junto da troika e da Alemanha para obter uma racionalização do programa da troika, sem ser em desespero de causa e em posição de fraqueza pelo incumprimento, porque não quis. A margem de manobra não era muita, mas existia, só que o Governo quis usar o memorando para prosseguir uma agenda ideológica própria e, para isso, era útil ter um pretexto externo.

Fez orelhas moucas a qualquer proposta de alternativa, incluindo as que vinham de sectores que lhe eram próximos, como as prevenções de Manuela Ferreira Leite e do Presidente da República, em privado e em público, nem ouviu a proposta de Miguel Cadilhe sobre uma espécie de imposto de guerra excepcional e duro, que havia condições para aplicar em 2011 e já não há hoje. O mérito dessa proposta, melhorada e modificada, seria traduzir a gravidade da situação num momento excepcional, muito duro que fosse, mas único e limitado no tempo, beneficiando do consenso sobre a necessidade de austeridade que existia em 2011, e o facto de se aplicar a todo o património e não apenas aos salários. Podia atingir progressivamente todos os rendimentos e patrimónios, mesmo os mais baixos, numa altura em que o empobrecimento ainda não tinha feito os estragos que já hoje existem e ainda havia alguma folga. O facto de ser excepcional tinha a vantagem de favorecer a aceitação da sua dureza, porque as pessoas sabiam da gravidade da situação do país e estavam dispostas a fazer sacrifícios. E era uma medida "política" porque manipulava um tempo excepcional como sendo excepcional e não destruía as expectativas de futuro, como o fazem os sucessivos pacotes de medidas de austeridade, sempre insuficientes. Não era a panaceia para as mudanças estruturais necessárias, mas permitia que se fizessem depois com mais folga. Mas o Governo não quis porque o seu caminho era levar a uma brutal queda de salários, e a uma inversão das relações de força sociais, com carácter permanente.

Dou este exemplo, entre muitos, porque havia e há alternativas mesmo na prossecução do memorando da troika para quem não aceita a chantagem de que o país se divide entre quem não quer a austeridade e quem é "bom aluno" e paga as dívidas. Este preto e branco é outra versão do "não há alternativas". De facto, não há alternativas a passarmos sem austeridade, concordo, mas há alternativas a todas as políticas concretas do Governo e elas têm sido apresentadas.

Uma mentira comum da propaganda é estar sempre a dizer que "ninguém apresenta alternativas", o que não é verdade. Mas o Governo não quer ouvir, e onde hoje toca estraga tudo e acabará por ser derrubado ou por cima, porque os poderosos que sempre o apoiaram o vêem hoje como um empecilho e um risco, ou por baixo, pela multidão. Em ambos os casos é um caminho muito perigoso, até porque começa a perceber-se que é um caminho sem alternativas...

(Versão do Público de 29 de Setembro de 2012.)

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ESPÍRITO DO TEMPO:  HOJE

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2259

The obligation of subjects to the sovereign is understood to last as long, and no longer, than the power lasteth by which he is able to protect them. 

(Thomas Hobbes)

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