ABRUPTO

30.6.03
 


POEMA DE VASCO GRAÇA MOURA

a propósito de alguns boatos que o davam como autor anónimo de O Meu Pipi , VGM publica no Abrupto as seguintes "décimas de refutação". Agora digam lá se isto não é verdadeiro "serviço público".


décimas de refutação

já num blogue o meu pipi?
de um pipi, que caso estranho...
eu vou ali e já venho:
dó, ré, mi, fá, sol, lá, si.

é forçoso que eu desminta
com vigor essa atoarda:
por muito usar a espingarda
e por gastar muita tinta,
não se espere que consinta
na falsidade que li
e me ofende o pedigree:
garanto que não fui eu
o brejeiro que meteu
já num blogue o meu pipi.

quer-se o pipi bem guardado
para uso pessoal:
nestas coisas afinal
deve ser-se recatado.
demais, quem seja versado
nos tiques do meu engenho,
das prosódias que eu amanho
já saberia de cor
que eu faria bem melhor
de um pipi... que caso estranho!

nem da lira tiraria
maior glória do instrumento
quando ao pipi acrescento
a minha morfologia.
e decerto não cabia
num blogue assim o tamanho
do lenho ardendo no lanho.
pipilar pipis na liça
muito enguiça e pouco atiça...
eu vou ali e já venho...

o que é de césar, quem jogue
assim a césar o dê
e se entender o porquê
deixe então que eu desafogue:
que não pus pipi no blogue
nem pus blogue no pipi:
ri melhor quem no fim ri
por redondilha ou quiasmo,
ou por música de orgasmo:
dó, ré, mi, fá, sol, lá, si.

vasco graça moura
 


HISTÓRIA DAS ESTRADAS

Ainda ninguém se lembrou de fazer uma história de uma estrada moderna, como a EN 1 com a sua ascensão e decadência. Era interessante, quase que se podia fazer uma história de Portugal no século XX com base na EN 1.
 


A DESTRUIÇÃO DE PORTUGAL

Como vivo numa aldeia, tenho que fazer parte da viagem para Lisboa por estradas e caminhos mais ou menos secundários, ou caminhos que foram importantes , como a antiga EN 1, e agora estão um pouco abandonados de tudo menos de trânsito. É um espectáculo confrangedor a destruição da paisagem, a partir das estradas para dentro, para os campos que sobram. Restaurantes manhosos, casas, fabriquetas, uma nova praga que são uns stands de automóveis, camiões, máquinas ao ar livre, crescendo todos os dias de uma forma anárquica, tornando irrecuperável parte imensa de Portugal. Tudo mergulhado no lixo, na sucata, nos melões em tendas à beira da estrada, no pó, nos montes de entulho deixados por todo o lado.
E cada vez é pior, e este é o sentido para onde vamos. Cada vez é pior.

Agora vou apanhar mais um avião, fazer mais uma corrida, mais uma viagem, como nos carrinhos de feira e, com o céu limpo, durante vinte minutos, ver a destruição por cima, sob a forma das pedreiras ferindo tudo o que é monte ou colina, alastrando de castanho amarelado no meio do verde, às dezenas e dezenas entre Lisboa e Coimbra. Faz pena.
Se alguém fizer, ou se já existir um movimento contra as pedreiras, contem comigo.

29.6.03
 


A PROPÓSITO DA PIDE

No Combate, órgão do PSR, o partido trotsquista membro do BE, António Louçã compara-me com Goebbels e propõe que eu seja julgado como Milosevic no Tribunal Penal Internacional pelas minhas opiniões sobre a guerra do Iraque. Não é metafórico, nem blague, é mesmo a sério – se ele pudesse prendia-me.
 


ESTADO DO ABRUPTO (JUNHO 2003)

A semana passada deu-se uma pequena revolução na blogosfera, certamente fruto da maior exposição pública deste tipo de media: aumento do número de blogues e maior número de leitores para muitos blogues individuais.
O Abrupto, como penso aconteceu noutros blogues, teve um incremento muito significativo, quase o dobro, de leitores e “pageviews”. Neste momento atingiu as 70.000 “pageviews” em pouco mais de seis semanas (dados do Bstats o contador com uma série mais longa), sendo deste mês quase 43.000, até hoje. A média actual de “pageviews” diárias atingiu esta semana mais de 2.100, e mantém-se consistentemente acima de mil há várias semanas. O dia mais visto foi 23 de Junho em que houve mais de 3.000 “pageviews”, um efeito da reportagem do Público.

Os dias com mais afluência são segundas e quintas, embora haja uma frequência muito regular durante toda a semana e uma quebra no fim de semana e feriados. As melhores horas são o principio da tarde, o principio da manhã e as horas da noite.

O Abrupto é muito lido em Portugal, depois na Europa, a seguir no Brasil e nos EUA - Costa Leste e residualmente na Ásia (talvez Macau) e na Costa Ocidental dos EUA. Há um pico num fuso horário que deve ser dos Açores e Madeira. Comparativamente, os Estudos sobre Comunismo são mais internacionais do que o Abrupto.
Pela análise das “entradas” no Abrupto, análise mais difícil de fazer e só indicativa, um número muito significativo de visitantes vem de fora da blogosfera e chega ao blogue através de procuras no Google ou outros motores de busca ou entra directamente vindo da rede.

Há cerca de 200 blogues portugueses e brasileiros com ligações ao Abrupto. As “acções” do Abrupto no Blogshares subiram de 0.25 cêntimos para 199.57 dólares, à data em que escrevo esta nota.
Obrigado a todos.
 


BLOGUES COMO ANOTAÇÕES DO MYLIFEBITS

Existem muitos paralelos entre os blogues e o projecto da Microsoft de incluir no Windows um programa intitulado MyLifeBits, uma espécie de backup da vida toda. Sobre o MyLifeBits escrevi no principio do ano um artigo no Público em que chamava a atenção para o modo como a vida afectiva podia ser afectada pelo MyLifeBits e pela manipulação da memória, em particular, pela obsessão da memória que o programa permitia. Agora vejo as similitudes entre alguns problemas suscitados pelo MyLife Bits e os blogues.

Ambos os programas se desenvolvem num sentido comum, ao associarem a nossa percepção do vivido com o seu registo em tempo quase real, seja sobre forma literal no MyLifeBits, seja sobre a forma de anotações nos blogues. As anotações “vividas” nos blogues representam bem o tipo de observações e divagações que o MyLifeBits permite associar aos eventos registados. No MyLifeBits cabem os livros e artigos que lemos, todas as fotos e vídeos, telefonemas e mensagens, mas o mecanismo de ordenação e procura é um fio interpretativo, uma espécie de auto gnose, de conversa interior com que os “anotamos” e isso é a matéria dos blogues.

O resultado é um confronto acrescido connosco próprios. Uma nota muito significativa do Monologo revela a estranheza com o nosso passado sentimental, com um “estado” irrepetível, uma espécie de oddity , de nostalgia perplexa que já existe nos blogues e ainda existirá mais no MyLifeBits:

reler posts antigos
tentar retirar posts que contenham referências a estados mentais
agora parecem-me ridículos
reconstruir percurso bloguista significa o quê? que me incomoda exposição de sentimentos, só isso
as emoções e sentimentos polarizam a nossa agenda mental. quando o efeito se vai, o pensamento prevalece (eu acho)...”


Os blogues e o MyLifeBits tem aspectos mais revolucionários do que se pensa, porque permitem um grau de exteriorização da auto percepção – mesmo que efabulada – que nunca existiu e um tipo de confronto com o modo como “nos fizemos” sem paralelo no passado. Pode ser doloroso e infeliz, e na maioria dos casos será porque há mais infelicidade do que felicidade, mas trará novas formas de perturbação interior.

(Continua)
 


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 9 (Actualizado)

1. Realizam-se as comemorações dos 150 anos do objecto que deu origem a esta série de notas: o selo postal. O Público tem hoje um artigo sobre os primeiros selos portugueses, os “D.Maria”, um dos quais, novo, vale uns milhares de contos. Mas os selos estão mesmo em extinção e sobre o estado do e-postage saiu um artigo interessante no último número do PC Magazine.


2. Outras sugestões de objectos em extiinção enviadas pelos leitores do Abrupto:


- “a farinha 33 e óleo de fígado de bacalhau, nunca mais os vi”(Pedro Figueiredo)

- “um tabuleiro de glicerina que servia para um professor policopiar com a maior das boas vontades e alguma semelhança com os jornais clandestinos, os materiais que utilizava nas suas aulas. os ingredientes comprava-os na baixa, numa drogaria que não sei se também já foi extinta e depois preparava-se ao lume. Parecia uma receita de culinária. Tudo tinha de ficar muito liso no fim para não haver "falhas" na impressão. Porque é que eu tenho alguma saudade dos tabuleiros de glicerina? Porque era nova? sim, porque agora é tudo mais fácil.” (Maria Pereira)

- Mário Filipe Pires comenta este último objecto, o gelatinógrafo:

"Interessante a correspondência sobre os objectos em extinção, a referência que se faz ao tabuliero de glicerina chamava-se gelatinógrafo.
No entanto é pena que isso não seja divulgado, já que na falta de qualquer energia electrica ou solar permite fazer cópias e pode servir num aperto.
Já a noção de a dificuldade ser um dos atractivos é sintomática. O facto de ser dificil implica que haja empenhamento e verdadeiro entusiasmo. A facilidade de relacionamento que as tecnologias de comunicação permitem, tem levado á criação de relações de aparente proximidade que muitas vezes se revelam falsas.
Projectos que se iniciam com um núcleo de entusiastas verdadeiramente motivados e se vão alargando, podem a médio prazo acabar por divergencias de empenho. O sindroma dos trabalhos de grupo de liceu onde apenas um ou dois fazem o trabalho e os outros se limitam a assinar vem-me sempre á ideia nessas ocasiões."




28.6.03
 


DA PSICOSSOMÁTICA À CARTA ROUBADA

Parte da equipa da ex-Psicossomática, que depois de acabar o blogue escreveu para o Abrupto, está agora na Carta Roubada, de inspiração lacaniana.
Felicidades .
 


HOTMAIL

A minha caixa de correio no Hotmail encheu e várias mensagens foram devolvidas. Já a esvaziei e por isso está de novo disponível.
 


“TRANSPARÊNCIA E BOM GOVERNO”

O primeiro título esteve para ser “os suíços já não são o que eram”, mas, pensando bem, é exactamente o contrário. Não é que um Fórum económico prestigiado suíço se preparou para convidar o Presidente de Angola José Eduardo dos Santos para falar de “transparência e bom governo”. Sem ironia? A sério? A sério.
José Eduardo dos Santos que tem fundos bloqueados na Suiça por ordem de um juiz e é citado em processos em França sobre luvas do petróleo devia ser o interlocutor ideal. Parece que acabou por não ir, mas o convite, se a esquerda não protegesse os seus, seria um magnífico argumento contra o capitalismo … suíço.


CONGRESSO DAS TRADIÇOES ACADÉMICAS

Parece que em Évora se está a dar um “congresso” com este título. A televisão anunciou-o apresentando umas cenas com uns meninos de cornos e umas meninas vestidas de índias, todos com abundantes pinturas de guerras, a fazer de tontos. Não sei de são imagens de arquivo ou se foi a dança de guerra que abriu o Congresso.
O interessante é que a maioria das universidades que participam são todas novas e nenhuma com “tradições”. Se calhar é por isso.

27.6.03
 


SHOAH

Dedicado ao Aviz

Saiu em DVD o filme de Claude Lanzmann Shoah. Já escrevi imensas vezes sobre o filme, mas não importa. Quero mesmo fazer propaganda. É daqueles filmes que provocam um antes e um depois, antes era-se adolescente retardado, depois fica-se adulto, antes era-se indiferente, depois é-se comprometido, do pathos ao bathos e depois do bathos ao pathos
Nunca vi melhor “documentário”, e vai com aspas porque a palavra é pobre. Se houvesse apenas um “documentário” sobre o século XX era este que devia sobreviver. Não há uma palavra a mais, um sentimento a menos, uma paisagem que não seja esplendidamente calma e intensamente cruel. O filme é sobre o holocausto e percebe-se como ele vem das ideias e não das necessidades, como o holocausto demonstra o extremo perigo das ideias, a sua banalidade burocrática, a sua presença quotidiana entre nós.
 


COMENTÁRIOS AO HORROR AO VAZIO (Actualizado)

PMF do Mata-Mouros enviou-me o seguinte comentário ao "Horror ao vazio":

"Existia, em tempos, uma expressão que, nos meios jurídicos, era frequentemente utilizada para qualificar o excesso de zelo do Legislador: “diarreia legislativa”. A incompreensão de que a ordenação jurídico legal é (deverá ser), por natureza, mínima - apenas devendo intervir, regulando, aquilo que se mostra essencial (juridicamente relevante) e, consequentemente, debatendo-se, em permanência, com a necessidade de encontrar um justo e efectivo equilíbrio entre, por um lado, a auto-regulação e a liberdade individual e, por outro, a intervenção hetero-reguladora, estatal e estatizante – leva a tal incontinência legislativa. O Direito deve servir (também et por cause...) para preservar os “espaços vazios” dos comportamentos e relações sociais, reconhecendo, por princípio, a sua natural legitimidade. Querer combatê-los, por regra e por reflexo condicionado (rectius, também por pressão de todo e qualquer “politicamente correcto”) é um primeiro e fatal indício não só de falta de reflexão, mas também de uma atitude pré-totalitária e, consequentemente, a-jurídica! Infelizmente, muitas vezes, as Instituições comunitárias rivalizam com os legisladores estaduais, nesta matéria! (...)

Não serão só a Comissão e o PE os responsáveis pelo injustificado “horror ao vazio”. No fundo, se tal medida “legislativa”, aludida no texto em causa, vier a concretizar-se, também os próprios governos terão que ser responsabilizados por tal cedência imediatista ao “politicamente correcto”: serão eles, no Conselho, que aprovarão tal eventual regulamentação comunitária...
"

Abel Campos lembra que

"essa "doença" é comum aos legisladores nacionais e europeus. Não me parece que se possa só culpar os eurocratas. Embora me lembre sempre da indignação de um amigo meu quando descobriu que em Bruxelas queriam regulamentar o diâmetro dos pepinos (nunca cheguei a saber se realmente queriam). Legislar-se-á demais porventura mas sobretudo legisla-se mal. E temos exemplos bastantes em Portugal, sem ser preciso ir a Bruxelas : não se lembra do "pormenor" da alteração das condições de interrupção da prescrição do procedimento criminal, devido ao "esquecimento" de se alterar também o Código Penal quando se alterou o Código de Processo Penal, e que teve resultados catastróficos (mas convenientes) para milhares de processos?
Quanto ao controle dos comportamentos, eu diria: isso é outro filme, que terá mais a ver com a obsessão PC que com a compulsão legislativa (mas admito que estes terrenos sejam movediços e de frágil distinção)"
 


MENTALIDADE DE REBANHO

Penso que foi o Jornalismo e Comunicação ou o Ponto Média que citaram recentemente um artigo americano sobre a “pack mentality” dos jornalistas . É o que se está a passar com os blogues – agora todos os jornais vão ter que ter pelo menos um artigo sobre blogues. Agora é moda porque é novidade, depois passará de moda porque já foi moda, e seguir-se-á o silêncio que envolve a não-novidade.

É muito interessante e revelador ver como os artigos da imprensa do mundo exterior, lá fora, são recebidos na blogosfera,. Cá dentro recebem palmas ou assobios conforme agradam ou não às tribos organizadas. É também "pack mentality".
 


CONVERSA

Duas personagens, o umbiguista primário e o umbiguista secundário, conversam numa esquina virtual. Conversam, aquecidos pelo sol virtual., muito excitados porque estão nos blogues e nos blogues é só sturm und drang..

Secundário - Em breve voltarei à discussão mais umbiguista dos blogues : a do umbiguismo. É uma discussão que te gera um pequeno incómodo, não é Primário , uma irritação …

Primário - … uma fermentação na alma, uma perturbação nem sempre mansa. Mas para que é que eu quero discutir os blogues e o umbiguismo , para que é que eu quero saber isso ? Eu quero fazer como eu quero. Pronto. Esta é a minha liberdade. Eu quero, eu falo, eu digo o que me apetece. Pronto. Vem de dentro e chega. Pronto.

Secundário – És um romântico preguiçoso …

Primário - … e tu, com a tua razão imperial, és contra a espontaneidade, contra o talento que brilha na escrita, contra a liberdade interior, insisto, queres é disciplina.

Secundário - Olha que não é a tua liberdade … só parece . Olha que nem sempre é talento, às vezes é só jeito, essa coisa muito portuguesa do jeito transformado em génio

Primário – O que tu queres , Secundário, é dominar-nos a todos pela via da interpretação, porque toda a análise nos tira a liberdade de não saber . É um aborrecimento ter que discutir estas coisas porque nos tiram a inocência e nós não gostamos de nos sentir atados pelo que sabemos e não podermos iludir que não sabemos o que sabemos. Depois em vez de parecer inocência, parece cinismo e isso é muito complicado.

(Virtualmente continua)
 


NOTAS TIRADAS EM VIAGEM

não num sofisticado Moleskine , mas num caderno ex-soviético, de capa grossa e papel a caminhar para o pardo. Pode ser humilde, mas se o trouxer à frente do coração não há bala que o atravesse, porque as capas parecem blindadas. Não é todos os dias que um caderno faz alguma coisa por mim. Em potência, como diziam os escolásticos


O HORROR AO VAZIO

Há uma doença nos legisladores europeus, seja da Comissão, seja do Parlamento: uma forma particular de horror ao vazio que os faz cobrir imediatamente com leis, regulamentos, directivas, tudo o que pareça espaço vazio de legislação. Parece que acham que a inexistência de uma lei numa actividade humana é um marco de barbárie e procuram de imediato ocupar o espaço com a civilização do direito.

Uma das áreas onde esta actividade tem crescido exponencialmente é no controle dos comportamentos. Com a ajuda do “politicamente correcto”, os legisladores descobriram que os comportamentos não estão ainda suficientemente regulamentados e tem o hábito anárquico de mudar, o que torna as leis anteriores obsoletas e exige umas novas. E eles querem é fazer leis para tornar o mundo um lugar tão desinfectado como uma morgue.

É o que a Comissão Europeia se prepara para fazer, tendo a intenção de proibir o que considera “imagens sexistas “ na televisão, em particular na publicidade. A obsessão, muito para além do problema real, pelo assédio chegou aos limites da punição da sedução, agora está-se no limiar da censura.


SOBRE BLOGUES PELA “EQUIPA DE UM BLOG QUE EXISTE NA AUSÊNCIA

De novo, enviado pela equipa da Psicossomática, e com uma semana de atraso (meu), um comentário sobre de onde vem a voz que se ouve nos blogues:


Não fazemos juízos de valor sobre “tribos” ou orientações políticas assim como não nos interessa (por enquanto) a questão da identificação que vai da assinatura através de nick até ao uso do nome real. Interessa-nos assinalar e registar padrões no mundo virtual, isso sem dúvida alguma. Interessa-nos muito essa deslocação entre mundos paralelos onde temos verificado, precisamente, as simetrias de que começámos por falar. O fenómeno big brother pode, perfeitamente, caber nesta discussão porque há de facto uma dimensão exibicionista que depende do voyeurismo e vice-versa. Se fosse possível representar graficamente esta situação recorreríamos a uma gravura de M. C. Escher ou ao mais comum exemplo do símbolo da Renault que não é mais do que a concretização gráfica de uma impossibilidade. E de que impossibilidade falamos afinal? Precisamente a da ideia mítica de uma “livre” e diferente expressão em oposição à expressão constrangida e padronizada, ou seja, a que opõe o mundo virtual ao mundo real. Nada do que até agora observámos nos indica que estejamos perante “linguagens” assim tão diversas. Tudo parece apontar para a replicação ou simetria. Apesar de tudo temos que registar uma importante diferença formal à qual o conteúdo se adapta e que é o “link”. Este elemento “perturbador” é que cria a única e fundamental diferença deste ambiente virtual e que se prende com a leitura que é efectuada na vertical e que, aparentemente, ilimitada encontra a limitação de quem produz os links. (O número transcendente ainda não encontra no link a sua expressão física!).

Quanto ao “umbiguismo” temos verificado como essa é a expressão mais próxima da do divã de Freud onde cada palavra ou ideia esconde outra palavra ou ideia. Há uma vontade manifesta de falar. Posta-se para poder falar. Na maioria dos blogs podem ler-se posts que sugerem esta pergunta: Quem é que não esteve disponível para ouvir esta pessoa? Não consideramos o “umbiguismo” um fenómeno “natural” ou “normal” até porque estamos habituados a duvidar do valor, com certificado passado e reconhecido, dessas palavras. O “umbiguismo” é a superfície do que lhe subjaz. E o que lhe subjaz? Nunca saberemos (de novo a impossibilidade), nem que, por hipótese, os "posts" dêem origem a livros ou apareçam publicados na imprensa. Arriscamos uma única ideia: a da infelicidade que é mais ou menos genuinamente vivida.


26.6.03
 


I'M BAAAAAAAACCCCCCK !!!!!

dizia Jack Nicholson enquanto aguçava o machado no Shining

(já tenho o meu til ~~~ o resto segue dentro de momentos)
 


VOLTO

logo.

Obrigado pela paciência e a fidelidade.

O mundo voltará aos seus eixos, nas terras onde há til e o nao nao é nao mas nao com acento. Nao se percebe pois nao? A gente só dá por ela quando as coisas faltam, amado til.

24.6.03
 


NEM VALE A PENA TENTAR

No sitío onde estou a frase escrita em cima demorou meia hora a sair direita. Entre a primeira letra e a segunda o cursor pisca cinco minutos .Posso ir ver o mar e voltar. Já descontando acentos e caracteres. Nao vale a pena .

23.6.03
 


AVISO A TEMPO POR CAUSA DO TEMPO

Há muitas coisas interessantes para comentar na blogosfera. Tenho recebido correio com textos que justificariam ser colocados imediatamente em linha, e cartas que exigiriam resposta na “volta do correio”. Nada fica esquecido, mas tenham paciência se o Abrupto andar mais devagar.
Esta semana vou trabalhar para o Grande Norte, atrás do frio, e não sei se terei máquinas, teclados, caracteres, quanto mais acentos, para escrever. Não é impossível, mas é difícil. On va voir.

22.6.03
 


VALE A PENA

Como toda a gente, ajuízo pelo meu interesse. E blogues como Guerra e Pas , Portugal dos Pequeninos (grande texto do Cesariny !) , Dicionário do Diabo , Desactualizado e Desinteressante , valem bem a pena do nosso bem mais escasso, o tempo.

Não concordo de todo com o Complot : a blogosfera está cada vez mais interessante, o que está é diferente.
 


ATMOSFERA

Na blogosfera, metade parece estar deprimida porque ainda não foi para férias, outra metade porque já está em férias e uma pequeníssima minoria não consegue ficar deprimida. A mera existência desta minoria subversiva exige que se chame a Polícia do Pensamento.

Eu também não concordo com o artigo do Pedro Rolo Duarte. Aliás a expressão “não concordo” não é a melhor, porque o artigo tem pouco a ver com os blogues mas com as guerras tribais dentro dos blogues. Ele tem uma tribo que suspeito estar demasiado próxima no seu território de outra tribo, se é que não é o mesmo turf. Dizendo “não concordo” pareço estar a levantar a bandeirinha de um lado contra o outro. Só o digo porque, como ele tratou a parte como o todo, e usou algumas raivas disfarçadas de argumentos, não concordo.

Agora também há algumas verdades no que ele diz, como há nos que o atacam. Eu tenho uma velha mania que é tentar distinguir os argumentos, as informações, mesmo as boas frases, da ganga. E tenho um velho hábito, aquele que é para mim o fundamento da sociedade liberal em que quero viver, de ouvir os outros. Não, não é caridade cristã, nem dar a outra face, é curiosidade, gosto pela discussão, e uma palavra pouco ouvida neste universo de grandes excitações – tolerância. Excluo da tolerância a estupidez e a ignorância arrogante.

“Tomar partido” é uma coisa muito séria , e só se justifica para coisas muito sérias. A gente na vida “toma partido” poucas vezes, não pode estar a viver sempre num estado de grande excitação moral. Vejam lá o que é que esse permanente exibicionismo moral deu no Dr. Portas.

Há pouca renovação em muitos blogues ao fim de semana , ao domingo em particular. Quando se fizerem teses académicas sobre a blogosfera, este será um indicador interessante. Porque é que os nossos autores “trabalham” tanto à semana e descansam no fim de semana numa actividade que defendem, com unhas e dentes, ser “lúdica” e “desinteressada” logo propícia aos fins de semana ? Foi porque Deus Nosso Senhor lhes disse para descansar? Duvido.

A resposta mais imediata tem a ver com a condição social dos autores dos blogues, em todos os sentidos – profissão, acesso à rede nos locais de trabalho, condição estudantil, tempo livre “arrancado” ao trabalho, o chamado “direito à preguiça”, e a relação de solidão urbana em frente a uma falsa máquina de companhia , o computador, etc.

Mas suspeito que há uma outra razão indizível que está a trabalhar como a toupeira: há quem olhe para as “audiências” e saiba que o fim de semana não é grande coisa, e, como nas televisões, não vai gastar os melhores programas quando há pouca “audiência”. Bem vistas as coisas é natural, os blogues são um meio de comunicação, obedecem a lógicas idênticas.


 


PARENTELA

Ando para colocar este fragmento de poema no blogue desde o primeiro dia. É uma parte de uma longo poema de escárnio e mal dizer de Airas Peres Vuitorom, sobre um dos meus primeiros parentes históricos. Fala de Fernão Rodrigues Pacheco, alcaide de Celorico, que ficou fiel a D. Sancho II e se recusou a entregar o castelo aos partidários do Conde, futuro Afonso III, numa das nossas mini-guerras civis. O poema de Vuitorom louva-o porque não traiu e escarnece dos outros que deram logo as chavinhas dos castelos.

Todo o poema tem um sabor inimitável a outros tempos, o dos Tructesindos da Ilustre Casa de Ramires. Só que este alcaide existiu e a troca de insultos antes da batalha soa imenso à verdade, até com o latim episcopal.

Aqui vai ele com as notas integrais de Graça Videira Lopes , Cantigas de Escárnio e Maldizer, Lisboa, Estampa, 2002, que o publicou:

E quando o Conde ao castelo [ar] chegou de Celorico,
Pachequ' entom o cuitelo tirou; e disse-lhe um bispo:
- Mitte gladium in vagina, com el nom nos empeescas.
Diz Pacheco: - Alhur, Conde, peede u vos digam: Crestas!

Notas :

- empeescas - impeças, importunes.

- A resposta do alcaide de Celorico, Femão Rodrigues Pacheco, é um pouco obscura. . Peede é certamente o imperativo do verbo peer (peidar-se).

- Crestas - uma interjeição medieval com o sentido de “ao ataque!”. O sentido da resposta será pois: “Desaparecei, Conde, e borrai-vos cada vez que ouvirdes dizer ataque!”


A vantagem destes textos é mostrarem, numa só penada, como era o mundo antes do domínio dos “estados de alma” e do divâ do Dr. Freud. Porque houve um mundo antes dessa perniciosa invenção dos dramaturgos nórdicos e dos romancistas russos da mente atormentada. Este Pacheco, este bispo e o Vuitorom já não se fazem nos dias de hoje.

21.6.03
 


À DISTÃNCIA MAS TÃO PERTO

A equipa da Psicossomática enviou para o Abrupto mais uma contribuição para a discussão sobre os blogues, desta vez a propósito do artigo de ontem no DNA de Pedro Rolo Duarte.

O tempo e o modo da sua carta (agora chama-se e-mail mas é uma carta) são pouco comuns para esta comunidade. A Susana ( com o acordo do Diogo e do Heitor) escreve-me dos “tempos mortos” de uma urgência hospitalar, devido ao “descanso dos utentes (normalmente as urgências só costumam “animar” no domingo à noite entrando pela segunda-feira, agora é tempo de praia e o descanso dos utentes é o nosso descanso também e, ironicamente, dos mais idosos que ficam por aqui abandonados pelas famílias mais “ocupadas” com o lazer e que portanto se “desocupam” dos incómodos pais e avós “largando-os” nas urgências antes das férias, das “pontes”, tantas vezes dando moradas falsas e telefones inexistentes!) “.

O olhar, vindo de onde vem, ganha em distância:

O artigo de PRD me parece muito interessante e igualmente próximo daquilo que já lhe manifestámos e que colheu nas nossas observações do movimento blog ao qual pertencemos durante o tempo que julgámos necessário e que os azares informáticos também “ajudaram” a determinar (a nossa “deformação” profissional acrescentaria qualquer consideração freudiana mas abstemo-nos de entrar por esse vasto e fértil campo!). PRD começa por descrever o comportamento de um blogger de uma forma desassombrada e que julgamos corresponder, grosso modo, ao que temos observado na blogosfera e que se prende com outros problemas que vão, cada vez mais, fazendo parte do dia a dia de qualquer psiquiatra e psicanalista que ouve queixas de mulheres cujos maridos as teriam “trocado” pelos computadores, homens e mulheres cujo único meio de contacto com o mundo real é através do mundo virtual, homens e mulheres que se servem da Internet para exprimir, exibir ou “resolver” patologias tão diversas como diverso e imperfeito é o mundo que vivemos. Um mundo feito de solidões, de infelicidade mal disfarçada, de uma velocidade que tapa o sol com a peneira que “obriga” os profissionais da saúde a um “upgrade” fundamental (Eduardo Prado Coelho escreveu, aqui há tempos, um “fio do horizonte” que apesar de alguns erros punha o dedo na ferida do sofrimento mental)

Observar, a título exemplar, as horas a que se “posta” é um dado curioso a juntar ao que vamos sabendo. A título de exemplo podemos assinalar estas horas que marcam os posts de um blogger num mesmo dia: o último post é feito de madrugada (3:54:03) e o da manhã marca 10:17:12 naquilo que é um padrão desse blogger e da maioria dos bloggers. O que se retira desta observação é apenas este padrão que, pensamos, deve corresponder a um outro padrão de vida e comportamento destes bloggers.

Julgamos que o mundo virtual é tão rico em informação (a tal gigante biblioteca) como pobre no confronto real (corpo a corpo, olhos nos olhos) com a desilusão que a realidade oferece e que, para muitos, é insuportável pelo que carrega de frustração. O mundo virtual, em que se incluem os blogs e até o pensar dos blogs, é um mundo mais protegido e protector.

Curiosamente, recebemos um mail de um blog “Bouvard e Pécuchet” que faz um apanhado humorístico de posts (a que chamam postolos) dos blogs e não o vimos linkado em nenhum dos blogs (e foram muitos) que consultámos (para uma comunidade que exibe tanto humor e que desmonta a imprensa escrita com gozos de todo o tipo ou até análises sérias, o silêncio em torno de blogs que criticam blogs tem um peso simbólico que conviria analisar)

Os estudos da psicóloga do MIT, Sherry Turkle, a propósito da comunidade hacker encontra nesta comunidade blogger um importante paralelo que se refere ao investimento de horas no computador e comportamentos do tipo compulsivo. Sublinhe-se ainda que a comunidade hacker, mais aparentada com a estrutura das seitas secretas, faz a sua passagem para a vida real, sem que esse seja o seu objectivo, através das empresas de software que vão escolhendo os melhores elementos para criação de melhor produto comercial. A comunidade blogger transita da vida real para a virtual para, eventualmente, poder viver a vida real de outra forma, ou com outro tipo de ganhos.

É igualmente curioso verificar como se organiza a comunidade blogger através de grupos de elite que se apoiam entre pares, atacam ou ignoram os considerados “corpos estranhos”. Recorrendo aos links, à expressão “amigo/a”, por exemplo, podemos “arrumar” os bloggers em grupos e sub-grupos sem dificuldade. Há um blog “Cruzes Canhoto” que o mostra sob o seu ponto de vista, subjectivo, mas que consideramos muito intuitivo e próximo da realidade
.”

Obrigada à Psicossomática por participar num interesse que nos é comum, com o olhar mais desapiedado da "análise".

 


VERDADES NO REINO DAS FRASES CURTAS


Portugal é o estádio da Europa”, dizem os reclames do Euro 2004. Os portugueses já suspeitavam. Os estrangeiros já sabiam.

Não há jornalismo público e privado, mas há bom e mau jornalismo” disse Rodrigues dos Santos . É uma absoluta verdade. Mas se é assim também não há “televisões públicas e privadas, mas boas e más televisões”, e eu não vejo razão porque é que os portugueses têm que pagar dos seus impostos uma televisão que é tão má como as outras e, às vezes, tão boa como as outras.
 


PRISÕES

João Nogueira no Socio[B]logue continua a discussão iniciada aqui com os “dois tempos” . Algumas notas complementares:

1. A questão dos “dois tempos” tinha para mim um duplo sentido. Um, é o da diferente percepção psicológica do tempo prisional e do tempo “exterior”. Temos debatido esta parte. Mas há uma outra dimensão que também estava presente na nota inicial, que deliberadamente não referia Cunhal : o de como, na narrativa da biografia, se compatibiliza um tempo em que acontecia tudo e um tempo em que não acontecia nada. “Nada” não era para ser tomado à letra, mas significava o domínio de rotinas – uma vez descritas, repetem-se sempre e por isso não se prestam a uma narração . Ou seja: como é que se puxa um fio narrativo através de uma contínua e programada repetição de gestos, que em si não tem novidade. A resposta que dou no livro é a óbvia – através do que Cunhal lê, escreve, desenha e pinta na cadeia.

2. O caso de Cunhal é singular e por isso não se pode generalizar, mas também não pode considerar-se como adquirido que, enquanto preso, foi totalmente imune aos efeitos do encarceramento. Bem pelo contrário, alguns desses efeitos podem ser documentados e faço-o no livro: doenças com uma componente psicossomática, traços de depressão, etc.
O principal testemunho de Cunhal da sua passagem pela Penitenciária é o Estrela de Seis Pontas que, como toda a ficção de Cunhal, é puramente autobiográfica. Tudo o resto ou desapareceu, foi cuidadosamente retirado dos arquivos (por exemplo na Penitenciária existem registos herdados de Bocage, mas nada há sobre Cunhal e Galvão, “desapareceu depois do 25 de Abril”), ou está indisponível. Por isso temos que nos ficar pela Estrela, onde existem, como nas Memórias do Cárcere de Camilo, elementos para descrição do mundo prisional que apontam para os efeitos do encarceramento no autor. No entanto, o que é mais interessante no livro é o nítido processo de identificação de Cunhal com os presos comuns.

3. O mesmo se pode dizer dos desenhos, a que dedico grande parte de um capítulo, onde também é nítida a efabulação de uma relação com um mundo exterior que contrasta com a estéril “presença” visual do mundo prisional. Visitei a Penitenciária, refiz os trajectos possíveis de Cunhal dentro da cadeia, olhei da sua cela para fora, e a pobreza e a tristeza de “vistas” é absoluta.

4. Quanto à cela como “espaço de liberdade”, inteiramente de acordo. São os “outros”, como diria Sartre, que são muitas vezes o inferno. Por isso, a cela pode ser o espaço da “solidão desejada”, mas é-o certamente da “solidão indesejada”. É talvez aqui também que a questão da privação sexual se coloca com mais agudeza. Cunhal na Estrela de Seis Pontas retrata a omnipresença da sexualidade efabulada e real na cadeia com bastante rudeza e realismo.

3. Depois há outros efeitos da “dualidade temporal”, que neste caso são relevantes, como seja o atraso ou a ignorância por parte do preso de acontecimentos fundamentais para a sua visão do mundo e, mesmo para a sua estabilidade psicológica. `Tudo indica, por exemplo, que Cunhal só soube durante o seu julgamento da vitória dos comunistas chineses.
 


A HISTÓRIA NO REINO DAS FRASES CURTAS

Paulo Agostinho escreveu-me de novo fazendo a ligação entre a discussão sobre a história e o império do soundbyte, explicando porque é que a “ história não cabe no Reino das Frases Curtas” :

Creio que o soundbyte está bem assimilado pelo público, pelo meu público (infantil) e pelo grande público (o que vê televisão preferencialmente a ler os jornais). De tal forma que muitos políticos o aceitam e orientam os discursos de forma a gerar um soundbyte, pois sabem ser esta a chave que lhes permite entrar em casa dos cidadãos, através da televisão. A escola (que como todas as instituições é conservadora), resiste a aderir ao soundbyte, mas é um esforço inglório. Ao professor é dada uma escolha: ou entra no "Reino das Frases Curtas" ganhando a atenção dos alunos e pondo de lado o rigor da explicação fundamentada, as nuances, os cinzentos que sombreiam toda a realidade, ou recusa-se a aderir ao soundbyte e perde o seu público. O trágico desta escolha é que em ambas as hipóteses o rigor da informação está ameaçado e a função de ensinar é substituída pela de entreter.

As frases curtas ficam no ouvido, são facilmente repetíveis em segundos de noticiário e insinuam uma realidade marcada por um dualismo reconfortante: há os maus e os bons, a direita e a esquerda (a ordem não é arbitrária, se estivermos atentos aos noticiários), os fumadores e os não-fumadores, os ortodoxos e os renovadores, os americanos e os inimigos da globalização, Israel e os palestinianos...
E a História no meio de tudo isto? A um público reconfortado por uma realidade a preto e branco e habituado à frase curta, como se pode pedir que goste de história, que pense sobre o seu passado e procure a partir dele explicar o presente?

No "Reino das Frases Curtas" o tempo é efémero. É o tempo da palavra falada. Quando muito, é o tempo da palavra impressa em papel de jornal cujo eco, como todos sabemos, soa por um dia ou por uma semana, no máximo. Uma sociedade que tem esta noção de tempo não pode, de modo algum, aceitar o conceito de tempo histórico. Recusa-se a aceitar que o passado seja a causa dos problemas do presente. Vejamos o exemplo do Iraque. A explicação para a intervenção americana encontra-se no petróleo (que é o presente, existe, está lá, provavelmente prestes a cair nas garras das petrolíferas americanas) e não no terrorismo do 11 de Setembro (que é passado). A 12 de Setembro ainda se aceitava dizer "Somos todos americanos" (belo soundbyte), mas tanto tempo depois o eco já não se ouve. Ou melhor, ouve-se, mas não no "Reino das Frases Curtas".


 


LINGUAGEM

A linguagem, caro Pedro, até é a forma principal das pessoas se esconderem.

Sobre isso repito o que disse Pessoa "quando falo com sinceridade, não sei com que sinceridade falo".

20.6.03
 


PORTUGALIAE MONUMENTA FRIVOLA

Primeiro, é um grande título, Portugaliae Monumenta Frivola , parece um nome de blogue. Depois o livro de Eugénio Lisboa, que já saiu há uns anos, e que, com a distribuição errática das livrarias, é difícil de encontrar, tem uma liberdade de espírito rara nas nossas letras. Entre outras coisas estão aí ensaios sobre o cruel mundo das invejas literárias portuguesas, sobre autores quase esquecidos como Domingos Monteiro, tão rapidamente ignorados, uma polémica mais que actual com António Barahona (Muhamad Rashid), e umas listas do tipo das que a Montanha Mágica sugeriu.
 


MAIS UM

que não fala sempre do mesmo: o Socio[B]logue do João Nogueira, meu interlocutor sobre prisões, solidões, e tempos árduos. Colocado sob a égide da Marginalia de Poe :

" sobre o seu fascínio pelas anotações, apontamentos e comentários com que coloria abundantemente as margens dos seus livros. Essas notas anódinas – nas suas palavras ‘scribblings’, ‘pencillings’ e ‘marginal jottings’ – constituíam, em sua opinião, lembretes imprescindíveis na reconstituição do texto; embora se tornassem desprovidos de significado e ininteligíveis se separados, isolados ou subtraídos do seu contexto original. Este blogue é, também, ou sobretudo, de alguma forma, uma compilação desses ‘scribblings’, ‘pencillings’ e ‘marginal jottings’ que tanto fascinavam Poe. Sociológicos, claro."

O Socio[B]logue contribui, em conjunto com muitos dos blogues aparecidos no último mês e com os melhores dos pioneiros que já cá estavam, para que a blogosfera não tenha centro e funcione pela lei dos grandes números, oscilando num e noutro sentido, exercendo o seu efeito nos que nela entram de muitas e variadas maneiras. Cintilando.
 


DOIS TEMPOS 2

Os “dois tempos” da minha nota anterior eram obviamente sobre a prisão de Cunhal, em cujo terceiro volume da biografia estou a trabalhar, e que cobre os anos da prisão de 1949 a 1960. João Nogueira escreveu-me comentando os “dois tempos” na base do trabalho sociológico que nos últimos dois anos tem estado a fazer “sobre prisões e encarceramento”. Levanta a seguinte objecção à “dualidade temporal” :

O tempo «dentro» não é «linear» (ou, se quisermos, «linearmente lento»), quando se procura fazer uma «fenomenologia da vida prisional». Com efeito, em boa parte das etnografias prisionais que li até hoje, é notória a existência de diversas fases na percepção da passagem do tempo por parte de reclusos (sobretudo, em reclusos com penas de longa duração). Veja, a título exemplificativo, o que me dizia um ex-recluso condenado a uma pena relativamente extensa (9 anos) em sede de uma «entrevista biográfica» (história de vida/ estória de vida).

Segundo a sua «experiência vivida» afirmava existirem três fases distintas na percepção da passagem do tempo:

"O tempo na cadeia tem três fases. Tem a fase inicial que custa muito... de adaptação. O tempo custa muito a passar. Depois o do meio, passa-se num instante: 'O quê já passaram quatro anos...' Depois no final é a ansiedade, quando se aproxima a saída. Aí o tempo volta a ser muito lento. Mas na fase do meio nem se dá por ela passar. Não se vive, vegeta-se... A entrada custa a aceitar... A adaptação áquele ambiente, os problemas, a vida cá fora, o que se deixou, os crimes, as perspectivas de vida... às vezes pensa-se na evasão. Depois pensamos: 'Isto é uma fase de passagem... vamos lá ver se me aguento cá dentro'. É a parte mais difícil. Depois uma pessoa mentaliza-se... Passa muito rápido. Depois vem a ânsia de viver. A ânsia da liberdade." (Ex-recluso)

Assim, no período inicial, de adaptação à prisão, de assimilação da cultura penitenciária e de internalização dos tempos institucionais, o tempo custa muito a passar ["Você não imagina como é acordar a noite inteira, olhar para o relógio e ver que só passou uma hora, às vezes meia... uma pessoa pode enlouquecer à espera do dia seguinte. É um tempo muito lento... muito lento. E custoso, obviamente." (Ex-recluso).

Na fase que se segue, pontifica o sentimento do tempo parado e inerte, onde os rituais quotidianos são incorporados e os dias passam sem se dar conta. Na última etapa, regressa o tempo que custa muito a passar, devido à enorme ansiedade provocada pela proximidade da libertação. Ademais, esta percepção do tempo não é universal (e é, na verdade, algo teleológico argumentar que todos os reclusos passam por estas três fases) e muitos reclusos, apresentam diferentes maneiras de experienciar a passagem do tempo. As tempografias da experiência de reclusão são, por conseguinte, muito heterogéneas.

Assim questiono-me porque tentar dar uma noção de imobilidade «lá dentro». Porque não dar uma noção menos linear da evolução da percepção do tempo lá dentro, com as suas flutuações, mutações, hesitações, etc...? Fica a sugestão
.”

O meu problema é que lido com um caso individual, não generalizável, de um preso político, altamente motivado, numa cadeia de presos comuns, numa situação de isolamento sui generis, que tem que ser analisado como político, mas também como homem que está preso, sujeito aos efeitos e perversões da vida carcerária. Tento fazê-lo em dois capítulos do livro, um dos quais intitulado provisoriamente “estratégias contra a solidão”. Quando li a literatura sobre o encarceramento e os seus efeitos, era para mim claro que alguns dos efeitos de interiorização do regime prisional aí descritos, alguns inclusive de identificação com a instituição prisional, não se verificavam dada a força de resistência psicológica do preso, fruto da sua personalidade e da motivação política e ideológica. Mas, nem tudo era assim tão simples.

No entanto, mesmo aqui, tive que me defrontar com a diferença entra a situação dos presos políticos numa cadeia onde só há presos políticos (Peniche ou o Tarrafal por exemplo) e em que estes se defendem da institucionalização criando uma “contra-sociedade” na prisão (aulas, estudo em comum, caixa de solidariedade, actividades partidárias, direcção política das actividades, hierarquia própria ), com o caso de Cunhal que permaneceu longos períodos de prisão isolado. Aí não há esse efeito de “contra-sociedade” limitando os efeitos da “instituição total”.

Por último, a percepção do tempo vivido, sendo psicológica, é também neste caso, afectada pela importância de uma filosofia individual da acção, impregnada pela história, que corre … cá fora.


 


O REINO DAS FRASES CURTAS

Dedicado ao Posto de Escuta

Lukács (cito de memória) gabava-se dos seus textos serem difíceis de citar como se fosse um mérito. Dizia ele que o pensamento racional, racionalista, como era argumentativo não se prestava à citação curta, precisava de espaço para se explicar. Confrontava-se assim com Nietzsche, citado com facilidade exactamente por ser o paradigma da irracionalidade. O fulgor estético de Nietzsche quase que incitava à citação da frase curta, que aparentemente diz tudo, e, para Lukács, não dizia nada.

Para o argumento não vale comparar a autoridade de Lukács com a de Nietzsche, ganha sempre Nietzsche. Não sou da escola de Lukács, nem concordo inteiramente com ele (mas quem me manda citar Lukács nestes dias, já era “passado” quando eu o li … e só serve para confirmar as suspeitas do estalinista lurking inside me, like the Thing) mas , nestes dias de soundbyte, de “frases do dia”, vale a pena pensar no que “não passa” lá fora e aqui, no Reino das Frases Curtas. Do que não cabe.
 


PRESENÇA DA HISTÓRIA

A ausência da história nos blogues, como aliás no discurso corrente, foi um tema a que me referi logo nos primeiros dias do Abrupto. Comparado com o número de comentários sobre os “objectos em extinção” (que tinha um traço de história, mas era também directamente vivencial) e sobre a leitura, nunca houve grande resposta sobre a história, confirmando as suspeitas. Quando ontem comentei a ausência de referências ao 11 de Setembro, mesmo apesar da sua relevância para o debate político actual e da sua absoluta contemporaneidade, penso que também existe uma recusa à consideração do tempo histórico como mecanismo de mediação.

Escola e comunicação social são hoje os principais factores de socialização, com a família, que nos “fazem”, por isso são inseparáveis. (Uma discussão acessória, que noutra altura desenvolverei, é a de saber a ordem de importância da família, escola, e comunicação como cultura de massas na socialização das gerações presentes). Paulo Agostinho escreveu-me, relatando a sua experiência de professor e de leitor, a propósito da história :

"Esta é, pessoalmente, uma questão angustiante porque vivo da história, ensino-a (este ano) a noventa crianças de Trás-os-Montes. Peço-lhes muitas vezes que o façam, que pensem sobre a história de que falamos nas aulas. Nos testes, arrisco uma ou duas questões que exigem essa reflexão (naturalmente doseada face à idade). Qual o resultado? Um confrangedor silêncio. Confrangedor para mim, pois sinto que falhei. Sinto-o sobretudo quando crianças (que se julgam bons alunos e têm notas de bons alunos) apenas conseguem repetir o que encontraram no caderno e no livro.

Em conversa com um amigo meu sobre este assunto, aventurámo-nos a colocar algumas hipóteses. Eis a principal: na escola não se pede que os alunos façam reflexões baseadas na realidade. Ou se pede uma memorização dos factos, ou uma reflexão apenas assente na imaginação. Nas disciplinas de língua portuguesa não se ensina a ler, a escrever, a compreender o que se leu e a expor o pensamento. Muitos dos alunos que tenho encontrado em seis anos de ensino não conseguem expor um pensamento próprio de forma clara, por isso defendem-se memorizando os pensamentos e as opiniões do professor e do autor do manual. Naturalmente, muitos não gostam de história. Não os censuro. Eu também não gostaria, se o rosto da história fosse aquele que se vê nos manuais escolares, uma compilação de dados, conceitos e explicações ultrapassados, mal escritos, caoticamente organizados e mal ilustrados.

Basta olhar para o programa do 9º ano para ver o caos daquela estrutura. Passo a alinhar as matérias seguindo a ordem do manuais (e do guia do ministério):
1-Partilha de África e Conferência de Berlim;
2- I Guerra, com as alianças, a guerra de movimentos e de posições, a entrada dos americanos e o armistício;
3- Participação de Portugal na guerra (com explicações que ignoram totalmente os estudos de Vasco Pulido Valente);
4- As consequências da I Guerra;
5- A Revolução Soviética, com um longo preâmbulo sobre a Rússia no tempo do último czar, o Domingo Sangrento, a Revolução de Fevereiro, a Revolução de Outubro, o Comunismo de Guerra, e a NEP;
6- Depois de tudo o que ficou para trás, deveriam os alunos estudar a Implantação da República em Portugal. Regressa-se ao tempo do Ultimato, fala-se do regicídio, da implantação da República, e avança-se até 1926. Tudo isto depois de, um mês antes, de ter falado da participação de Portugal na guerra de 1914-1918. Existe uma lógica nesta estrutura? Talvez haja, mas eu não a percebo (e os alunos muito menos, pelo que a história é, para eles, nada mais que um retalho feito de episódios soltos e sem ligação entre si).

Infelizmente, no secundário a falta de reflexão mantém-se e julgo não errar muito se disser que os alunos do ensino superior, salvo raras e honrosas excepções, não diferem muito dos anteriores.

Os nossos jornais e a restante comunicação social também não reflecte sobre a história, sobretudo porque a desconhece ou porque possui delas ideias gerais (muitas vezes nada mais que ideias feitas por vezes mais próximas do campo da lenda que da realidade histórica). Mas também porque dá trabalho, exige leituras e consultas, exige confirmar dados, citações, exige uma permanente actualização sobre a produção historiográfica. Tudo isto consome tempo que os nossos jornalistas seguramente não possuem, ou se o possuem gastam em outras tarefas.

Pensar a história implica conhecê-la bem e, para isso, precisamos de tempo, disciplina, vontade, gosto, precisamos de compreender a sua importância. Este último aspecto parece-me essencial para se perceber por que razão não se pensa sobre a história. A escola, como se viu, é (quase sempre) incapaz de mostrar que a história é importante. Os alunos citam, sem saberem, uma das personagens amigas da Mafalda (Quino, claro), que exige que a história lhe seja ensinada para a frente e não para trás, porque o que passou já não interessa. E os media também não usam a história para explicar o presente. Não se lhes pede que o façam sempre, mas houve e há situações que o exigem. A guerra da Jugoslávia pareceu a todos um acontecimento ilógico e a roçar o absurdo porque não se explicou o que eram os Balcãs e qual era o passado da Jugoslávia. A história do Estado de Israel também não é referida. E, para fazer referência ao caso da actualidade, para muitos a pedofilia e práticas sexuais com menores parecem males dos tempos modernos e claros sintomas do fim dos tempos, quando são, na verdade, práticas do início dos tempos.

Concluindo, a escola faz da história um relato sem sentido de factos passados e a comunicação social dá-lhe o golpe final ignorando-a.
"


19.6.03
 


TEORIA DAS TEMPERATURAS (2ª versão)

O general Kaúlza de Arriaga tinha uma teoria sobre a correlação entre a inteligência e o calor. Achava ele que, quando se caminhava para sul, o pensamento diminuía porque estava mais quente. No norte, o frio aguçava o espírito. Imaginem a ideia que ele tinha dos pretos.
Mas nestes dias eu fico resolutamente kaulziano. Quero é ir para o Norte. Quero pensar e o termómetro não deixa. Por favor não me enviem correio a dizer que o frigorífico chega para o refrigério, ou que nem a 0 Kelvin sou capaz de pensar. O que vale é que o Círculo Polar Ártico me espera.

Depois de publicado o que está acima , Ricardo Coelho mandou-me a seguinte objecção :

"Quando escreve "...ou que nem a 0º Kelvin sou capaz de pensar...", não entendi o que tenciona dizer com isso. Penso que sabe que a temperatura 0º K, é a temperatura absoluta, e nunca foi atingida. É uma das grandes batalhas da física experimental, tentar chegar a temperatura tão baixa. A temperaturas tão baixas (da ordem de algumas dezenas de graus Kelvin) muitos materias (supercondutores) têm características físicas fora do vulgar. Como o próprio nome indica, não oferecem resistência à passagem de electrões, porque a esta temperatura, crê-se a nível teórico que os materias se encontram bastante ordenados... Logo creio que se atingissemos esta temperatura (claro que primeiro morríamos...) as nossas ideias ficariam tão organizadas, que qualquer um, independentemente de que factores nos pudessem distinguir, teria muito melhores capacidades de pensamento."

Era uma ironia, mas a objecção é excelente! Considere-se a temperatura acima mudada para 3 Kelvin , a temperatura da radiação cósmica de fundo, o nosso fóssil cosmológico, e aí sempre se pode garantir um pensamento pelo menos bizarro, mas que vem de todo o lado (talvez).
 


CIDADES MORTAS

Já há algum tempo que estou a ler o livro de Mike Davis, Dead Cities . É um conjunto de ensaios, pelo que umas vezes leio um, depois outro. Davis ficou célebre quando escreveu City of Quartz , um livro premonitório para compreender os tumultos de Los Angeles.
O tema do livro é a destruição apocalíptica das cidades, a “morte” das cidades, uma questão que me interessa e sobre a qual escrevi a propósito de uma introdução às Lamentações, tidas como sendo de Jeremias. A destruição de Jerusalém é o modelo dessas “mortes” reais e simbólicas, uma constante na nossa tradição ocidental. Vulcões, inundações, bombardeamentos aéreos, tumultos, saques onde não fica pedra sobre pedra, terra salgada (Cartago), explosões, hecatombes, ar envenenado, incêndios – são a matéria deste livro. O que se percebe muito bem é a adequação do nosso viver urbano à destruição apocalíptica, como se percebeu no 11 de Setembro. Torna-se fácil.

Porque será que já ninguém se lembra do 11 de Setembro? Fiz uma rápida pesquisa com o Google nos blogues de língua portuguesa e contam-se pelos dedos de uma mão os portugueses que se lhe referiram. Pelo contrário, nos brasileiros, são centenas e centenas de observações. Mesmo deduzindo-se que há muitos mais blogues no Brasil e alguns contemporâneos do 11 de Setembro, não chega. É mesmo do que se pensa e do que se discute entre nós. Aponta para um padrão de interesses e desinteresses.
 


DOIS TEMPOS

Estou a escrever um livro (talvez acabe estas férias) que tem um problema complicado a resolver. É um livro sobre um homem que está preso onze anos, cuja vida no mundo carcerário é controlada ao milímetro, e cujos gestos possíveis e permitidos representam uma rotina imposta à força. Apitos, acender e apagar de luz, horários impiedosos. A prisão é, nos primeiros anos, uma materialização arquitectónica de uma ideia filosófica : o Panopticon de Bentham. Feita para tudo ser visto a partir de um olho central, o local último do poder. A “estrela de seis pontas”. Depois de quase um ano, em que não foi autorizado a fazer nada, o homem lê, estuda, escreve, desenha e pinta.
Cá fora há uma guerra, fria , mas guerra. Acontece tudo. O tempo é solto, é rápido, é o tempo da modernidade, acelerado. Como juntar num mesmo movimento tanta imobilidade e tanta rapidez?
 


CONSTITUIÇÃO EUROPEIA

O debate sobre a Constituição Europeia já está a começar a viciar-se. Está a centrar-se nas questões institucionais, onde os resultados dependem dos arranjos entre os governos em Salónica, e a aceitar como adquirido tudo o resto. Ora tudo o resto contem muitas coisas que não deveriam de todo estar adquiridas, porque abrem caminho à tendência de pensar a Europa como um país.

Num documento de trabalho que recebi de um defensor da Convenção enumeravam-se assim alguns dos “sucessos” da Constituição : integração da Carta dos Direitos Fundamentais, como uma “legally binding part of the Constitution” ( o documento é em inglês ), uma “única personalidade legal para a União”, “primacy of the Constitution and Union law over the law of Member States”, extensão das competências em matérias de negócios estrangeiros e defesa, incluindo um Ministro dos Negócios Estrangeiros da EU , vice-presidente da Comissão , e método da Convenção para futuras mudanças constitucionais.

Tenho muitas objecções à necessidade deste salto qualitativo, e receio que com estas acelerações constitucionais se crie uma situação em que qualquer crise política no futuro, semelhante à do Iraque, conduza a uma crise institucional com muito mais sérias consequências na UE. Anda-se a brincar com o fogo e com a força do facto consumado, vai tudo atrás.

18.6.03
 


BREVES

1. Para quem pensa que as boas maneiras e o altruísmo são apenas o resultado da educação individual, vale a pena ler um notável artigo de Robert Levine, “The Kindness of Strangers” no American Scientist de Maio-Junho 2003

2. Chris Patten é o comissário mais interessante, inteligente, vivo, cínico, irónico, witty e um daqueles com que menos concordo. Como se costuma dizer, em bom português, “sabe-a toda”, mas a verdade é que quando ele vai ao Parlamento é sempre uma festa para a cabeça, mesmo quando é um revolta para muita coisa que defendo. Comparado com Solana, com quem partilha as “relações externas”, é uma diferença abissal.
Atacado pelos seus colegas conservadores eurocépticos, respondeu num artigo no Spectator de 7 de Junho intitulado “I am a Tory to my toes” que mostra todas as suas qualidades e alguns dos seus defeitos. Percebe-se também que o seu objectivo é vir a ser Primeiro Ministro.
Vale a pena ler.

 


A COISA ESTÁ A MUDAR

Continua uma tendência , que não posso deixar de saudar com palmas , para uma maior diversificação da blogosfera .Variam os interesses, as idades, as escritas , os locais, os olhares . Temos um diário senense , um Comprometido Espectador, um judeu alentejano muito especial , a somar ao nosso latinista, ao nosso editor, ao nosso frequentador de alfarrábios e velharias literárias, começam a aparecer arquitectos, temos a nossa jurista dedicada, dominatrix da regulação, um causídico , etc. etc.. E ainda vai haver mais.
 


ALTERAÇÕES


A partir de agora rendo-me ao neologismo passando de blogs para blogues . Tem sentido se se quer introduzir o nome e a coisa no português .
A errática forma de colocar a pontuação, com ou sem espaço, também vai ser unificada . Por razões estéticas, mais que subjectivas, não gosto de colocar a vírgula ou o ponto logo a seguir à palavra. Perde espaço, respiração. Mas rendo-me aos correctores ortográficos por onde os meus fiéis amigos passam os meus textos.
Os erros de ortografia , mea culpa ,sem desculpa , uma vez assinalados são corrigidos. Obrigado aos assinalantes .

17.6.03
 


DISCUTIR OS BLOGS

Só talvez para o fim de semana é que pegarei de novo no texto individual / "colectivo" que vai na versão 3.0 . O assunto continua a ser discutido um pouco por todo o lado , mesmo pelos que recusam a oportunidade ou o interesse da discussão, que é também um ponto de vista a ter em conta . Entretanto há contribuições muito interessantes que integrarei no texto , mas que ganham em ser divulgadas de imediato . Uma delas vem da equipa do psicossomática ( que está em baixa , mas espero que volte ) enviada em e-mail de que transcrevo partes :

"O que mais nos interessa nos blogs é a dimensão da personae em desdobramentos de personalidade de uma intensidade que encontra na Internet um meio altamente propício mas que nos blogs portugueses (pelo menos os que conseguimos ler) não vai muito além de relatos da vida real, os tais diários ou posts “umbiguistas” (no Brasil, por exemplo, o fenómeno blog encontra no domínio da fantasia casos absolutamente extraordinários!). "

"Ao longo deste tempo em que fizemos parte da blogosfera (...) dizíamos, demos conta da replicação de ideias e tiques que encontramos nos jornais e nos meios de comunicação em geral. Aquilo que, na fantasia de alguns, podia ser uma alternativa às vozes dominantes ou ao “princípio da realidade” revelou-se afinal o inverso ou o reverso dessa mesma fantasia, ou seja, cada blog exibia de uma forma regular a vontade expressa de chamar a realidade ou o desejo de uma identidade com “nome” (no sentido que Lacan lhe atribuía). "

"O que observámos na maioria dos comentários que fomos lendo nos blogs à imprensa escrita, nomeadamente, tem origem no desejo (legítimo, diga-se!) de protagonismo dos que o assinam, mesmo dos que assinam com nicks. Para nós este é que é o “princípio da realidade” da blogosfera, ou seja, o da passagem de um anonimato ou semi-anonimato virtual para a conquista de um nome no mundo real.
"

 


OS MEUS LIVROS

No último Os Meus Livros vem uma série de depoimentos sobre os livros proibidos lidos antes do 25 de Abril . Os que dizem que os livros proibidos eram os do Eça (Carlos Reis , Helena Sacadura Cabral ) nunca leram verdadeiramente nenhum livro proibido e estão a dar-se ares de "antifascistas" . A história de colar o Canto IX dos Lusíadas com fita cola também me parece lenda urbana ...
Para quem viveu esses tempos , - e eu tive dois livros meus proibidos quanto mais ler outros sous le manteau - , percebe-se tão bem quem está retrospectivamente a inventar-se e quem de facto sabe do que fala . Não há volta a dar-lhe .

Só agora reparei que a coluna habitual de Marcelo Rebelo de Sousa na revista se chama "Li e gostei" . Na lista dos "lidos" deste mês estão sessenta e cinco livros , mais de dois por dia , incluindo o Dicionário Prático para o Estudo do Português e Gestão de Serviços . A Avaliação de Qualidade . Isso é que é "ler" ! A coluna devia era chamar-se "Faço listas de livros e gosto" . Ele e Os Meus Livros . Depois queixem-se da banalização da leitura .

16.6.03
 


VALE A PENA NA BLOGOSFERA


O Intelligo é um blog que só tem poemas , em bom rigor não é um blog . Mas vai-se lá e lê-se um , e depois outro e outro e outro , desses “Classici Scriptores” e mergulha-se na conversa interior da nossa fala ocidental , da Bíblia para Camões , para Catulo e Horácio , do português para o latim , sempre num brilho das palavras sem limite .


Me transmitte sursum, caledoni !” Ou seja “Beam me up, Scotty! “. Todas as semanas que tenho de ir a Bruxelas , como eu gostaria de dizer isto ao “caledoni” ! O Latinista Ilustre é uma grande entrada nos blogs ! Divertido e culto , original e curioso . Um bom sinal da variedade dos blogs que estão a nascer por todo o lado - Sit Vis vobiscum !

(E continuo a procurar resolver o enigma maurrasiano … )


Em Replicar esta descrição do ensino primário no Portugal profundo do século XIX .
 


AUTORIZAÇÃO DE CITAÇÕES

Sempre que alguém escreva para o Abrupto , contribuindo para as discussões do blog , pedia o favor de indicar se autoriza a citação do conteúdo dos e-mail . Por regra eu nunca publico nada sem essa autorização e continuarei a fazê-lo , mesmo depois desta nota ,sempre que não haja uma autorização explícita .
 


LER DUAS VEZES 4

1. Nuno Mota Pinto do Mar Salgado lembra as suas duas leituras de Os Maias de Eça :

"Li Os Maias pela primeira vez quando estava no liceu, com cerca de 15 anos. Voltei a lê-lo quando tinha cerca de 30 (há dois ou três anos). Talvez fruto de, da primeira vez, ter feito uma leitura conduzida pela professora (excelente diga-se) e pela aplicação do programa liceal de Português, a verdade é que então a impressão que mais fortemente ficou inscrita em mim foi o carácter trágico do romance entre Carlos da Maia e Maria Eduarda. A impossibilidade desse amor e a infelicidade gerada por esse encontro improvável impressionaram o meu espírito adolescente.

Aquando da segunda leitura, toda a história de amor me pareceu apenas um pretexto para uma obra notável de caracterização da sociedade da época. Admirei a ironia corrosiva das descrições certeiras do conservador e monástico ambiente universitário coimbrão e de uma burguesia e aristocracia lisboetas incultas e ambiciosas que vivem para e à volta do Poder (dois ambientes que conheço razoavelmente nos dias de hoje). Fiquei preso pela exposição detalhada e brilhante do estilo de vida da época. Dei por mim a pensar que muito do que então foi escrito tinha actualidade (acho que não fui muito original neste pensamento).
Estas diferenças levaram-me às seguintes reflexões:

- A mesma obra tem impactos diferentes e é lida forma diversa consoante o grau de maturidade do leitor. Um espírito adolescente, pronto a entrar nos jogos, manhas e imprevistos das seduções e das relações amorosas é provavelmente presa fácil para uma história de amor simples e trágica.

- A leitura orientada, que é o grosso da leitura dos portugueses (muitos deles não lêem mais do que aquilo a que são obrigados no liceu), pode dar uma visão truncada das obras, não permitindo a apreensão de toda a sua dimensão. Isto é ainda mais verdade quando o ensino do Português se centra talvez em demasia na compreensão dos aspectos formais de uma obra. Gasta-se imenso tempo em desagregações e classificações das figuras de estilo usadas e na explicação da inclusão de uma obra em movimentos literários, em vez de explicações mais simples do impacto e da importância do que lá está escrito para a compreensão do que somos.

- O facto de se ler uma obra com mais maturidade não quer dizer que a sua compreensão seja maior. Quando reli os Maias já era mais vivido, mais viajado, tendo inclusivé já estudado no estrangeiro. Ora, esta condição pode ter-me feito embarcar com facilidade no estilo notória e declaradamente estrangeirado de Eça. A esta luz, o exercício de transposição de descrições dos Maias para os dias de hoje pode facilmente cair numa manifestação de snobismo intelectual que não me interessa e que tento contrariar. Isto é ainda mais válido para outras obras de Eça como a Ilustre Casa de Ramires ou o Conde de Abranhos. A experiência aumenta a clarividência, mas também consolida e aprofunda vícios de raciocínio e de atitude mental.
"


2. João Costa lembra as palavras de Peguy , citadas por Steiner, sobre o papel da leitura :

"Une lecture bien faite...n'est pas moins que le vrai, que le véritable et même et surtout que le réel achèvement du texte, que le réel achèvement de l'oeuvre; comme un couronnement, comme une grâce particulière et coronale...Elle est ainsi littéralement une coopération, une collaboration intime, intérieure...aussi, une haute, une suprême et singulière, une déconcertante responsabilité. C'est une destinée merveilleuse, et presqu'effrayante, que tant de grandes oeuvres, tant d'oeuvres de grands hommes et de si grands hommes puissent recevoir encore un accomplissement, un achèvement, un couronnement de nous...de notre lecture. Quelle effrayante responsabilité, pour nous."

( Charles Péguy, Dialogue de l'histoire et de l'âme paienne (1912-13) citado por George Steiner , "The Uncommon Reader " (1978) , publicado em No Passion Spent, Yale University Press, 1996 )

Obrigada aos meus amigos Latinista Ilustre e Jaquinzinhos ( bizarra combinação entre o latim e o peixe ) que me ensinaram a colocar a reprodução do quadro de Chardin, Le Philosophe Lisant (1734) , que inspira o ensaio de Steiner .




 


SILLY SEASON

Já se notam os efeitos das férias: isto vai dividir-se entre as cigarras e as formiguinhas.

E lá vão as formiguinhas ganhar, como ganham sempre, ignoradas , gozadas , sem bronze , sem o sinistro toque dos Algarves , com aquela fome ancestral , de gerações , que as leva a trazer mais uma pedrinha , mais um raminho , a não se dispersarem , a terem disciplina , a pouparem .

Os outros levam os livros , mas depois há tanta areia , e está tanto calor , e deitei-me tão tarde …

E vai começar a silly season .


15.6.03
 


DISCURSOS DOMINICAIS


1.A defesa feita por Santana Lopes e José Sócrates do “estado” do Euro 2004 é inadmissível. É uma defesa sem sentido e perigosa do laxismo do Estado , da megalomania das despesas com estádios , da falta de rigor na gestão dos dinheiros públicos . Tudo em nome de um país atrasado subordinado ao Rei Futebol, que não se respeita a si próprio, nem ao dinheiro dos seus contribuintes .

2.A intervenção de Santana Lopes sobre Fátima Felgueiras mostra como é possível não ter qualquer repugnância ética perante comportamentos absolutamente condenáveis. A gente olha para as imagens e as palavras e não sente nenhum incómodo do político, nem sequer um esforço de fingimento, tão habitual nestas coisas. Se se trivializam actos como da felgueirense , não vamos longe .

3.Quanto ao comportamento da RTP no caso de Fátima Felgueiras , Marcelo Rebelo de Sousa , pelo seu lado , disse o necessário , coincidindo com o que vários blogs escreveram de imediato , incluindo este . Na questão da Constituição Europeia foi muito superficial, e pronunciou-se apenas sobre a agenda institucional . Ora a Constituição Europeia está longe de ser apenas uma “simplificação dos tratados” . Se fosse assim precisava de se chamar Constituição ?

 


DE NOVO SOBRE O FÓRUM SOCIAL

Sobre os comentários de Rui Noronha e Daniel Oliveira no Blog de Esquerda ao Fórum Social Português

1. Noronha diz que “a forma como se reduz o fórum ao mesmo de sempre, feito e dito pelos mesmos de sempre, apenas ilustra a incapacidade de compreender registos, discursos e práticas, naquilo que eles têm de fundamentalmente novo face ao passado recente”. Daniel Oliveira ainda vai mais longe e acha que há um Portugal antes e outro depois do Fórum :

Gente que, na sua terra ou no seu sector, vê a democracia como um acto de participação permanente, de vigilância cívica, de exigência cidadã. Mas gente que não se limita ao seu quintal e quer participar na construção do seu futuro. Este debate transversal entre todos os que, associando-se em torno de causas concretas, são capazes de pensar em conjunto, trocar experiência, divergir e convergir, é uma absoluta novidade em Portugal.”

2. Novo? Não há um único tema, uma única questão no Fórum que seja nova, quanto mais “fundamentalmente nova” ou “absoluta novidade” . Desde Maio de 68 e desde os movimentos americanos de “single issue” na mesma época , que todos , sem excepção , todos , os temas tratados no Fórum são conhecidos. Intitula-los uma “agenda política pós-moderna” , como faz Oliveira quando diz que

Movimentos feministas, de Gays e Lésbicas e de minorias étnicas há muito que vinham construindo o que se pode designar como uma agenda política pós-moderna. Pós-moderna porque se afirma na recusa das grandes narrativas políticas da modernidade, nomeadamente o Marxismo, na recusa de toda a teleologia e de qualquer leitura totalizante da sociedade e da história

também não vai longe . Este conceito de “pós-modernidade” tem pelo menos cento e cinquenta anos de história . Por exemplo , os anarquistas tinham a si associados movimentos a favor da contracepção, anti-tabagistas , contra as touradas , naturistas e vegetarianos , a favor de uma língua universal , etc. , etc , e também recusavam aquilo a que ele chama eufemisticamente “as grandes narrativas políticas da modernidade.” Arrombar portas abertas e proclama-lo é muito arrogante .

3. Quanto à forma , o Fórum não é distinto de realizações tão “burguesas” como o “Portugal que futuro ?” do Dr. Soares (acho que se chamava assim ) ou de algumas acções do Presidente Eanes e do PRD . Este tipo de realizações de “movimentos” fora dos “partidos” são tristemente semelhantes na forma e nos resultados . Esta teve talvez mais folclore.,

4. É a referência à globalização que faz a diferença ? Duvido , a globalização na teorização dos mentores do Forum é um outro nome para o capitalismo internacional em situação “unipolar” , ou seja , sem o “campo socialista” . Mesmo os que distinguem a “globalização” boa da má, retomam palavras e ideias conhecidas de Marx ou Rosa Luxemburgo .

5. Depois procura-se à lupa a “novidade” e nada se encontra fora de impressões . O exemplo de Noronha é bem característico da vacuidade do Fórum , fora das “impressões” existenciais de quem lá esteve :

Sentado numa oficina acerca da arte e as suas possibilidades de intervenção política – com a desorganização própria de algo incontrolado que dá os primeiros passos e procura caminhos – ou assistindo a uma mesa redonda acerca de documentários, com o Eduardo Cintra Torres, o A. M. Seabra, a Diana Andringa, o Rui Leitão (genial como sempre) e o José Filipe Costa, apenas consegui pensar no potencial existente em pessoas que ainda tacteiam em busca de uma forma de fazer diferente. Encontrei gente que eu conheço de contextos completamente distintos e distantes e que nunca esperaria ver ali. E é precisamente essa característica de espaço de contacto entre contextos habitualmente incontactáveis que faz a diferença.”

Mas isto é um vulgar colóquio ! Onde é que está a diferença ? Foi bom o colóquio ? Gostou ? São pessoas “que ainda tacteiam em busca de uma forma de fazer diferente” ?” Força !
A única diferença entre isto e um colóquio é o seu enquadramento político – ou seja , para alguns há aqui uma forma de poder , uma procura de poder . Os intelectuais de esquerda, quando perdem a sua função oracular junto do poder sentem-se mal . O problema é que a democracia não lhes dá qualquer privilégio “interpretativo” pela sua condição de intelectuais .

6. Sobre o carácter dos auto-designados “movimentos sociais” do Fórum, Daniel Oliveira tem toda a razão nas comparações que faz

Pacheco Pereira quer saber onde estão os No Name Boys e os combatentes da guerra colonial. Acrescento mesmo: e o movimento Pró-Vida? E as mães de Bragança? E as Vicentinas? Pacheco Pereira confunde o Fórum Social com a Câmara Corporativa. O Fórum não representa o todo social. Representa o mundo social que luta por uma globalização alternativa. É um espaço de confluência política.

Todos os movimentos referidos , o “Pró-Vida” , as “mães de Bragança” são do mesmo tipo dos representados no Fórum . Daniel Oliveira acaba por admitir que não é o carácter de “movimento social” que os distingue , mas o seu sentido político . Foi exactamente o que eu disse sobre o Fórum : é um movimento politizado , associado a partidos ou proto-partidos , com uma lógica de poder político e não “social” .
Só posso saudar a exactidão da referência à Câmara Corporativa do salazarismo , porque o corporativismo de esquerda , com velhas tradições em Portugal , é o único programa esboçado no Fórum que é alternativo à visão marxista tradicional .

14.6.03
 


DISCUTIR OS BLOGS 3.0 (Versão actualizada)

NOTA PRÉVIA : Início de uma reflexão sobre os blogs , feita de notas soltas que se irão acrescentar e completar umas às outras . Isso significa que este "Discutir" poderá a vir a ser alterado - não no conteúdo - mas na forma . Para manter a integridade da relação com os comentários dos outros blogs que incorporo no texto , essa relação será sempre referida . Para distinguir as versões umas das outras seguir-se-á um sistema de numeração semelhante ao do software .Está a bold o que é novo .

NOTA PRÉVIA 2 : Em muitos blogs apareceram comentários a este texto e sobre ele recebi imenso correio . Estou a tratar toda essa informação para a poder colocar numa nova versão do texto . Registe-se , de imediato , que no Modus Vivendi , no Epicurtas , no Tracejado e no Gato Fedorento se encontram comentários desenvolvidos a este texto . No Liberdade de Expressão está uma fábula sobre os blogs como "catedral" ou "bazar" com directo interesse para esta discussão .


1. Talvez seja a altura , é sempre a altura , de discutirmos o meio que usamos , os blogs , a comunidade dos seus utilizadores , a blogosfera , e os seus efeitos no âmbito mais vasto do sistema comunicacional . Infelizmente temo-nos centrado apenas na discussão do elemento do meio , a blogosfera , e desprezado o primeiro e o último .

2. Penso ser interessante identificar a novidade e especificidade dos blogs como meio de comunicação , não apenas de forma teórica , mas também testemunhal , dizendo cada um o que lhe interessa no uso de um blog , assim como chamar a atenção para um trabalho que ainda está por fazer sobre o “público” da blogosfera . Quem nos lê , o que é que se procura nos blogs ( informação , opinião , entretenimento , curiosidade pelo vizinho que tem um blog , namoro via blog , etc. , etc . ) , com que frequência ,


Vasco Colombo enviou-me um e-mail com a seguinte caracterização dos blogs :

"No caso dos blogs, é óbvio associá-los quer às crónicas de jornal, quer aos diários, dois dos mais populares suportes para textos de um certo tipo.
Pessoalmente não os sinto dessa forma. Sigo alguns, poucos, com uma certa regularidade e por estranho que lhe possa parecer, a sua possibilidade de actualização a qualquer momento, faz-me pensar nos blogs como qualquer coisa mais próxima de uma dinâmica de rádio do que da de um jornal. Um exemplo rápido e simples: pouco depois da conferência de imprensa de Fátima Felgueiras, fui espreitar o Abrupto para ver se havia colocado algum post sobre o evento. E não me enganei. Há uma aproximação entre os momentos de emissão e recepção que só na rádio ou tv eram possíveis. A novidade dos blogs é permitir essa aproximação num suporte escrito de grande difusão.
Possivelmente ainda estou na tal fase de dizer que os blogs são uma espécie cruzamento de dois géneros. Confesso que não pensei muito sobre eles. Mas o tema dos cruzamentos interessa-me, ainda que como mero método de abordagem. As reflexões que faço sobre o meu próprio website são um exemplo: o website de um ilustrador, deverá ser, em princípio, uma declinação do portfólio clássico. Questiono-me porém se será essa a analogia correcta. Seria interessante, numa próxima versão, partir de outro paralelo: os cd's e os concertos ao vivo. Num concerto de rock ou jazz, o público não pretende ouvir a reprodução exacta do que encontra no cd, mas sim ter uma experiência suplementar para além da música, que a actuação ao vivo permite. Daí a improvisação, a cenografia, a interactividade com o público. Não será difícil imaginar a transposição deste conceito em abstracto, para o par portfólio/website. (...)

Estes cruzamentos, que decorrem quase sempre de avanços técnicos, geram metamorfoses na natureza de algumas coisas e exigem um constante esforço de reclassificação. Seja a natureza do livro quando este deixou de ser executado por copistas e passou a ser impresso, seja a natureza da nossa relação com as imagens quando em todos os lares passou a haver uma câmara fotográfica (ou agora, em que o imediatismo das digitais acabou com o último ritual ainda existente: o de mandar revelar e esperar, 45 minutos, pela misteriosa alquimia da revelação química). "


3. Esta reflexão em que alguns ( não todos , como é normal ) estarão interessados é um instrumento essencial para se ultrapassar o “umbiguismo” como única forma de auto-referência da blogosfera .Há dois tipos de "umbiguismo" na blogosfera , e o termo , que escandaliza muitos , tem sentido .

Objecções à utilização do termo "umbiguismo" em O Crítico . . Defesa da inevitabilidade do "umbiguismo" e referência ao mesmo processo noutros meios de comunicação no Gato Fedorento .


4. Um é um "umbiguismo" natural , impulsionado pela forma do meio . O blog tem a estrutura de um diário e por isso “gera” diários . A existência de diários mais ou menos íntimos , que são públicos é uma novidade permitida pela rede ( estes diários já existiam antes dos blogs ) , mas potenciada pelos blogs . Tem muitos riscos porque a linha entre o íntimo e o público, sendo quebrada , pode ter consequências perversas . Até por isso o blog cumpre um papel próprio num sistema cada vez mais complexo de meios de comunicação disponíveis .

4.a. Nota : no DNA citado no Pastilhas , Miguel Esteves Cardoso teorizou sobre o tipo de escrita nos blogs :

"Blogar é escrever num meio terrivelmente aberto - interactivo, instantâneo, espúrio - a partir de um momento terrivelmente particular - o eu, o ser, a alma. É um lindo fogo posto que salta entre a faísca da intimidade e o incêndio público de todas as coisas.
A força do blogue está no facto de não haver mediações; do salto ser puro; da combustão ser total. Não estou a falar apenas do editor, do director do jornal ou da editora, mas também do ardina, da bicha para comprar um livro, dos transportes, do tempo, de todos os obstáculos sociais e materiais que normalmente se interpôem entre um escritor e um leitor
."

Parece-me uma caracterização redutora , mas justifica a discussão . Penso aliás que corresponde àquilo que muitos que escrevem nos blogs tentam fazer . O modelo da escrita de Miguel Esteves Cardoso teve grande influência na primeira geração de blogs .Vale a pena ler o texto todo .

Comentário no mesmo sentido do anterior , com referências à especificidade da escrita nos blogs e ao papel da "beleza" no Gato Fedorento



5. É a segunda forma de "umbiguismo" que é mais perniciosa : a de só se discutir a comunidade , nalguns casos entendendo-a como a família , o círculo de amigos , o clube mais ou menos privado , ou a seita política ou jornalística . Isso faz implodir e é , a prazo , estéril . Alguma depressão dos últimos dias na blogosfera tem essa componente de “trabalho de luto” por uma família que está a partir , a partir-se , porque está a crescer . Convém lembrar que mesmo num jantar , se estão mais de seis pessoas â mesa , já há dois grupos a conversar de coisas diferentes . Imaginem com quinhentos.

6. A propósito desta multiplicidade de conversas é preciso ouvi-las todas para entender a blogosfera . Ainda que de uma forma imperfeita , porque os bloguistas representam um sector social muito pouco representativo da sociedade , o que nelas se ouve não é alheio ao que se ouve “lá fora” , e ao modo como se fala “lá fora”. Veja-se o caso da política , uma parte pequena da blogosfera (Incorporo aqui uma objecção de António Granado no Ponto Media ) .

7. Contrariamente ao que se pensa , as diferenças políticas não são tão importantes como isso na blogosfera que fala de política . Parece mas não são . Podem vir a ser , mas não são .
Eu próprio tive essa primeira impressão pelos discursos paralelos da Coluna Infame e do Blog de Esquerda em que ambos acentuavam o confronto direita-esquerda na blogosfera ( ainda hoje o Blog de Esquerda se queixa da desproporção entre esquerda e direita dando continuidade a esta linha de pensamento ) . A existência de um grupo de blogs alinhado politicamente numa União de Blogs Livres também favorece essa impressão . No entanto , se se consultam muitos outros blogs , para além dos “de serviço público” do Blogo , a realidade é mais complexa . Se se tratar a questão por “issues” , por exemplo vendo o que directa ou indirectamente se escreveu sobre a guerra do Iraque e questões conexas , mesmo que apenas com referências culturais ou “sentimentais” , a distinção e a proporção esquerda-direita já não é assim tão nítida , nem os mecanismos de politização tão inequívocos .


8. O que se passa em alguns blogs políticos é que existe uma forte tendência auto-proclamatória , de auto-classificação , que acompanha quase sempre uma maior pobreza analítica , a dificuldade de pensar a política como uma actividade complexa , que , em territórios como estes , só sobrevive se for associada a uma mais vasta perspectiva cultural e social . Quem chega assim tem a tentação de plantar a bandeira logo , marcar o território e escolher lado . Depois faz sempre batalhas de posição , e essas batalhas não nos ensinam nada .

9. Eu uso os blogs para todo o meu trabalho , sem qualquer fronteira com quaisquer outros meios de comunicação . Uso os Estudos sobre o Comunismo , como um meio complementar de registo bibliográfico , de troca de informações com os outros investigadores , de divulgação de notas , de pedidos de informação . A forma de blog permite essa parte do trabalho quotidiano , muito importante numa área de estudo em que toda a investigação é primária e quase não há bibliografia secundária . A forma blog no entanto não é suficiente e tem limitações , pelo que necessita de ser complementada por um site que disponibilize informação mais "estável " e que divulgue alguns resultados de investigação .


10. Quanto ao Abrupto serve-me para várias outras coisas , algumas que posso fazer nos outros meios de comunicação social , e outras em que a forma do blog é única . A facilidade de acesso imediato ao público é uma delas - usei-a , por exemplo , com as histórias das peripécias televisivas de Fátima Felgueiras , quase em tempo real , ou , noutro dia , com idênticas peripécias à volta de Hermann e dos Globos .


11. A esta vantagem da imediaticidade acrescenta-se o facto dos blogs serem neste momento o único meio de comunicação alternativo em que se pode livremente criticar os meios de comunicação social escrita e audiovisual . Por razões corporativas , os media tradicionais são muito avessos a essa crítica e esse é um espaço livre para os blogs e , quando se lê os mais interessantes entre eles , esse espaço já está a ser ocupado .
O caso das declarações de Wolfowitz é um exemplo de como escrever nos blogs tem efeito e deveria contrariar o efeito depressivo dos últimos dias . O mesmo tipo de pressão está a ser feito com o caso felgueirense . Só a arrogância da televisão pública é que a impede de se explicar quanto ao tempo de antena de Felgueiras . Alguém faça um print do que nos blogs se escreveu sobre isso e leve a quem manda na RTP , se há alguém que manda .

12. Por outro lado o blog não precisa de ser centrado num único tema . Ainda estou para perceber porque razão o Blogo me classifica em "Actualidade" , porque há bastante menos "Actualidade" no Abrupto ( a não ser que a Alice no Pais nas Maravilhas seja actualidade por causa da pedofilia ... ) do que nalguns classificados de "serviço público" , uma classificação também um pouco "umbiguista" e sem qualquer nexo , com excepção do Ponto Média e o Jornalismo e Comunicação ( e incluir por exemplo o bloco-notas que foi pioneiro nas “actualizações” ) . Uma das vantagens do Abrupto é eu poder escrever sobre o que me apetecer sem ter as limitações habituais da coluna regular num jornal .

13. Eu gosto de discutir , de confrontar opiniões e argumentos , e de ouvir e ponderar as críticas dos outros . É um velho hábito de quem escreve nos jornais desde os catorze anos , e de quem leu muito , estudou muito , trabalha muito , para ter a presunção que tem direito a emitir as opiniões que entende , porque pensa que elas não serão meras “impressões” . Nem sempre se consegue e também já escrevi “impressões” . Mas no essencial gosto de um clima árduo e desenvolto de debate , como é comum na tradição anglo-saxónica , e típíco das sociedades liberais e raro em Portugal . O que predomina por cá são os ataques pessoais , a má língua , o diletantismo ( o Modus Vivendi escreveu de forma certeira contra a nossa “facilidade em desistir” ) , a ignorância presumida , o insulto anónimo . A blogosfera também tem muito disto , mas penso que é possível encontrar massa crítica para fazer diferente . Por isso quando para cá vim sabia exactamente o que me esperava , o que queria e estou para ficar .

13.a.Sobre comentários nos blogs

Eu sei que esta questão é controversa , mas decidi desde início não ter comentários . Este tipo de interactividade não moderada presta-se a um acumular de lixo que abafa qualquer opinião ou comentário de jeito . A experiência que tenho com o Flashback na TSF ou com a leitura do pt.soc.política é do carácter contraproducente dos comentários , que servem quase sempre para trocas de insultos sem qualquer interesse . Poluição de má educação já há que chegue para se dar oportunidade a maior produção de lixo . Agora que paga o justo pelo pecador, paga .
De qualquer modo o e-mail , que só uso para o Abrupto , permite a quem quiser emitir a sua opinião e eu , periodicamente, após pedir autorização para citar o que dizem , coloco essas opiniões em linha . Claro que é “totalitário”
.


14. Seja em que circunstâncias for , mesmo quando o motivo mais imediato da conversa que se mantém nos blogs , é a própria blogosfera , o meu destinatário é sempre o universo ideal das pessoas interessadas pelo "espaço público" . Não escrevo para os amigos em público , a não ser que eles precisem por razões que são elas próprias de interesse público , nem me interessam inconfidências ou intimidades, meio caminho andado para a "aldeia global" , esse sítio pegajoso onde todos se conhecem demais uns aos outros .

Sobre privacidade veja-se Modus Vivendi


 


DAS COISAS MAIS, DAS COISAS MENOS


Aderindo ao furor classificativo, abro uma nova série no Abrupto . Uma vez por semana farei uma lista pessoalíssima das “Coisas mais e das coisas menos “, cobrindo o que se passou na semana anterior ou o que me chegou ao conhecimento nessa semana.
Haverá de tudo , política , cultura , jornalismo , livros , televisão , etc. , etc. Algumas das coisas referidas corresponderão a assuntos que tratei no blog , outras não . Nesses casos a entrada será mais desenvolvida . Como eu sou da escola dos argumentos, mesmo do “argumento do gosto” , que não se explica como os outros , farei o possível para não apenas classificar , mas explicar a classificação .
Como é obvio não é exaustivo, nem nada que se pareça, mas apenas subordinado às minhas viagens no “navio fantasma” . A ordem com que aparecem os itens tende também a ser arbitrária e sugestões são benvindas .


Coisas mais:


- Haver referendo à Constituição Europeia . Será bom na condição de não se ir para ele na base da política de facto consumado , sob o diktat que um “não” significaria sair da Europa e todas as tragédias possíveis para Portugal . Vamos ver.

- A tradução da Odisseia feita por Frederico Lourenço para os Livros Cotovia .

- Artigo da Maria Filomena Mónica no Público sobre o Fórum Social Português .

- Nova publicação da “Filosofia de ponta” pelo Independente , uma das melhores bandas desenhadas dos últimos anos .


Coisas menos :


- A Constituição Europeia, resultado essencialmente de uma imposição por Giscard d’Estaing de uma política dos grandes e para os grandes e impulsionada pela retórica europeísta que acha que o mais importante é haver um contínuo movimento para a frente , sem se preocupar sequer em consolidar o adquirido . Deviam ler mais Aristóteles e os clássicos sobre o valor político da prudência .
Foi patético o espectáculo do fim da Convenção , em que aos seus membros só faltou chorar de emoção , imaginando-se a fundar uns proto-Estados Unidos da Europa . Só haverá Estados Unidos da Europa no dia em que houver um patriotismo europeu , como há na América , e isso não se inventa, sente-se . Os membros da Convenção não o sentem porque pouco cuidarão dos europeus concretos, só da Europa abstracta.

- Tudo no Fórum Social Português : as declarações de Saramago e Boaventura de Sousa Santos , e toda a série de peripécias ocorridas no evento . Um bom retrato da inanidade política e teórica da nossa esquerda radical , da nossa extrema-esquerda .

- A ambiguidade do PS face ao Fórum, manifestada , de muitas maneiras , entre outras no País Relativo , e no artigo de Augusto Santos Silva no Público .

- O comportamento da RTP “pública” no caso Felgueiras .

- O caos na distribuição dos livros da Imprensa Nacional . Voltarei ao assunto porque é inadmissível que continue a situação de dinheiros públicos pagarem uma editora do estado, com critérios editoriais erráticos e que, como deve entender que o dinheiro que recebe é a fundo perdido , não se digna sequer distribuir condignamente os seus livros .
 


AGENDA

Hoje é dia de actualizar a agenda , quer do Abrupto , quer dos Estudos sobre o Comunismo . Durante o dia haverá novidades nos dois .
 


BIBLIOFILIA

Não se esqueçam que era Borges que dizia (cito de cor) que a “erudição era uma forma moderna de fantástico “. Os bibliófilos ainda tem esse traço do fantástico, a roçar pela mania. Vão ao Almocreve das Petas para sentirem esse gosto autista e magnífico pela acumulação , pela colecção , pelos papéis velhos .




11.6.03
 


A ENTREVISTA

(Refiro apenas a RTP porque é única que posso ver fora de Portugal , e porque sendo pública , os seus critérios editoriais tem que ser analisados de forma distinta das televisões privadas )

A RTP , como se não lhe bastasse o directo , continua com uma entrevista centrada na vitimização de Fátima Felgueiras que diz o que quer , perante os sorrisos intimidados de Judite de Sousa . Aliás , bastava , numa entrevista deste tipo , a jornalista esboçar um sorriso , para se passar para o lado de Fátima Felgueiras . O sorriso significa que não se toma a sério a gravidade do que se está a passar .

Há aqui um aspecto a que um dia voltarei . Não sei se são apenas os partidos políticos que atraem pessoas com personalidades como a autarca de Felgueiras (suspeito que o futebol também as atrai ) , mas a verdade é que eu já conheci dois ou três casos de pessoas deste tipo . que não são capazes de distinguir a verdade da mentira e são uma força da natureza pela sua concentração psicótica em si mesmos . A gente a olhar para elas , sabendo que estão a mentir , mas percebendo a força interior que os anima . São casos psicológicos interessantes , mas isso é para a literatura . Na política são um perigo , alimentam o populismo , instalam à sua volta um clima de amiguismo e vingança , e são capazes de tudo .
 


HORÁRIO POUCO NOBRE

Que vergonha ! Não por causa de Fátima Felgueiras , que faz o seu papel , patético que seja e que , de há muito , perdeu a vergonha . Vergonha é uma comunicação social que lhe dá o mais nobre dos horários , que muitas vezes não dá ao Presidente da Republica , um horário em que ela manda , porque diz o que quer sem ser contraditada , num exercício de populismo atentatório , apontando a dedo pessoas com nome , num apelo à vingança popular .
Assim não vamos lá . Se a própria televisão , a começar pela pública , paga por nós , lhe dá o melhor dos palanques , e a patrocina sem distânciação , sem repulsa ética , que traço de separação podem as pessoas comuns , as que não são como nós da elite que está na rede , para distinguir entre procedimentos admissíveis e inadmissíveis , entre o que está bem e mal .
 


TELEVISÃO PÚBLICA

Por que razão é que todos pensam ser natural que se transmitam as declarações de Fátima Felgueiras em directo ? Por que razão a RTP gasta dinheiro para fazer - como está anunciado - uma transmissão directa do Brasil do que a autarca em fuga irá dizer ? Se pararmos para pensar , chegaremos facilmente à conclusão que uma coisa é a operação mediática de interesse próprio de uma fugitiva à justiça e outra são as notícias que possam ser produzidas nessa conferência .

Por que razão é que não se grava o que ela diz , se retira a auto-propaganda que , neste caso , é também legitimação ou de um crime ou de uma fuga à justiça , e só se passa o que tem verdadeiro relevo noticioso ? Isto na hipótese de Fátima Felgueiras dizer algo de novo e relevante , o que , retirada a propaganda e a auto-defesa , será pouco . É isso que é o editing normal , preservar o conteúdo noticioso , caso exista , o que não é certo , da utilização dos media para actividades que tem uma componente criminosa .

Mas não : a feira mediática , cansada da pedofilia e do Dr. Portas , lá irá de roldão à vassalagem brasileira , espevitada pelo estilo de dirigente futebolístico de Fátima Felgueiras e dar-lhe o horário nobre , permitindo que diga o que quer sem contradita . E depois , no dia seguinte , é capaz de nos vir mais uma vez dar uma lição de moral , do género dos comentários que Manuela Moura Guedes costuma fazer para mostrar que a sua opinião é mais importante do que a informação que leu , quando lê uma informação e não uma intriga .

10.6.03
 


A COLUNA INFAME

O primeiro blog que eu li sistematicamente foi A Coluna Infame . Sobre ele escrevi no Público , ainda a blogosfera não era moda , considerando-o o melhor blog em Portugal . Se o meu blog tivesse genealogia , A Coluna Infame faria parte dela . A Coluna Infame foi a principal responsável pelo facto da hegemonia cultural da esquerda (com todas as ambiguidades que tem este nome ) , tão dominante nos sistema dos media , na educação , em todas as formas de comunicabilidade social , não o tenha sido nos blogs . Podia ter sido diferente , mas isso não é mérito do meio, mas sim da influência dos autores da Coluna .

Mas a blogosfera ( eu sei que o termo é discutível , mas não é mau ) tinha que mudar , como resultado do seu próprio sucesso . No cemitério da Internet estão milhares de textos utópicos apontando a rede como um instrumento de transformação do mundo pelas suas virtualidades tecnológicas. A Internet iria mudar a democracia , a sociabilidade , os consumos culturais , acabaria com a propriedade dos átomos substituindo-os pela comunidade dos bits , etc. , etc . E , nalguns casos , essa possibilidade espreitou , revelou-se , mostrou-se possível e , noutros , mostrou-se um caminho pior . Nunca nenhum meio , nenhum media muda qualquer coisa sem a sua interacção com a sociedade . Não são os inventos e as tecnologias que por si só nos mudam é a sua relação com a sociedade , as suas literacias , os seus consumos , a sua riqueza ou pobreza . No fundo , as exclusões sociais e culturais não ficam á porta da Internet , nem dos blogs .Há uma Internet pimba e da pornografia e outra do Livro Universal , da Enciclopédia Total . Como nos blogs haverá de tudo . Os blogs não existem fora da sociedade portuguesa , das suas tensões , dos seus hábitos , bons ou maus , das suas pechas políticas e culturais , mantidos num limbo pelas suas peculiaridades formais . Há novidade e características sui generis na forma blog , mas daí não decorre uma pureza essencial do seu uso .

É porque os blogs estão a deixar de ser elitistas que estas crises surgem . O clima de família, de grupo de amigos que se consideravam , independentemente das suas opiniões , que se elogiavam uns aos outros , o ambiente um pouco cosy , que já em si mesmo excluia muitos outros blogs , tinha fatalmente que acabar , com o crescimento e a maior exposição pública . Haverá quem goste, e quem não goste , mas seria ingénuo pensar que tudo iria continuar na mesma .

Ventos mais agrestes atravessarão a blogosfera e haverá quem aqui não se sinta bem . Mas os defensores de uma sociedade genuinamente liberal devem saudar este crescimento , esta maior exposição , esta espécie de crise de crescimento . O caso das declarações de Wolfowitz foi talvez a primeira vez em que os blogs mostraram um papel próprio em “empurrar “ os outros media convencionais , não o facto de haver frases escritas num blog e reproduzidas nas citações da imprensa . O segundo caso não tem em si novidade – as frases podiam ter sido ditas na rádio ou televisão – mas as falsificações de Wolfowitz dificilmente podiam continuar o seu curso sem uma explicação devido ao clamor em tempo real nos blogs . Os blogs que continuaram ( e continuam ) a catalogar os artigos e declarações feitas na base dessas declarações falsificadas , prolongam esse “serviço público” e a forma blog presta-se para isso . Como se presta para publicar textos de qualidade literária e estética , comentários quotidianos pertinentes e polémicas e discussões num tempo mais rápido . Mas , se do lado da produção há um acesso total , do lado do consumo há uma selecção .

A crise da Coluna teve componentes pessoais sobre os quais não me pronuncio mas foi amplificada porque se travou em público . Os blogs são aí terríveis , porque dilaceram , quase sem os próprios o perceberem , uma distância necessária , uma reserva vital para a identidade . Quem a ultrapassa acaba sempre por o lamentar mais cedo ou mais tarde , porque fica menos livre . Talvez tenha sido essa percepção de perda de liberdade interior que tenha acabado com a Coluna . . Mas não tenho dúvida que os três “infames” regressarão aos blogs ou continuarão noutros meios e por outros meios a escrever e a intervir e eu continuarei a lê-los pelos seus méritos . Boa sorte .


 


LER DUAS VEZES 3

1. Um dos livros em que para mim maior foi a diferença entre a primeira e a segunda leitura foi a Alice no País das Maravilhas . Aliás onde é mais evidente a diferença psicológica profunda , e a sensação estética distinta , ( ou o adquirido estético ) , entre leituras em idades diferentes é nos livros que se leram na infância , mais do que em qualquer outro período depois . Foi por isso que os exemplos que eu dei à partida , a primeira vez que escrevi sobre ler duas vezes , eram livros lidos na infância e “baixa” adolescência .

2. Quanto à Alice , a minha leitura íntima há-de ser sempre a primeira . Recordo-me que não entendi nada do livro , em particular do Para Além do Espelho , mas nunca mais me esquecerei desse universo complexo e caótico (que hoje sei ordenadíssimo pela partida de xadrez ) de personagens , ditos e incidentes . Agora , tenho a certeza , que a Alice nunca teria sido lida assim se na edição em que a li , uns livros praticamente a desfazerem-se duma edição brasileira (?) dos anos trinta ou quarenta , não estivessem lá as gravuras originais de Tenniel . Sem as gravuras eu não poderia “ver” o chapeleiro louco , o Humpty Dumpty , os gémeos Twedledum e Twedledee, a lagarta do cogumelo , o cavaleiro , o gato de Cheshire , a galinha ou o peru sem cabeça a sair do prato , o grifo , a morsa , e … a Alice , a personagem que , junto com o coelho , menos me interessou . Ou a porta pequenina e a Alice grande , o coelho a correr , o narguilé da lagarta , ou os baralhos de carta feitos Sturmtrupper . Sem as gravuras , acho que a Alice não teria sido o que foi , porque o texto é demasiado complicado .
Foi na Alice , mais do que em qualquer livro , que pela primeira vez percebi o caos e que senti o que é a imaginação em acto . O mundo da Alice , diferente de outras histórias infantis , não era o do maravilhoso – como nas imagens iniciais dos antigos filmes da Disneylândia se falava , em brasileiro , do “maravilhoso” – mas o do estranho . Tudo aquilo era estranho , eu aprendi o que era o estranho na Alice . Nunca mais precisei de livro nenhum nesta matéria .

3. Depois com o tempo , outras histórias , que não as que me impressionaram na infância , ganharam mais densidade . Foi o caso do encontro com o Cavaleiro , um dos episódios com uma rara e indefinível tristeza , que se acentua de cada vez que o Cavaleiro mostra a sua total inadequação ao mundo . O Cavaleiro é um pouco como o Quixote , uma espécie de personagem perdido no mundo errado , passeando pelas “invenções” sem sentido em pleno apogeu vitoriano da técnica , inventando tudo de errado , numa trapalhada de gadgets que não funcionam e que traz dependurados nele e no cavalo . Alice , como os jovens , é cruel e irrita-se com ele , mas aqui Lewis Carroll está do lado do Cavaleiro e quando ele canta a canção “with a faint smile lighting up his gentle, foolish face,” permite-se um dos raros momentos líricos do livro :

Of all the strange things that Alice saw in her journey Through the Looking-glass, this was the one that she always remembered most clearly. Years afterwards she could bring the whole scene back again, as if it had been only yesterday--the mild blue eyes and kindly smile of the Knight--the setting sun gleaming through his hair, and shining on his armour in a blaze of light that quite dazzled her--the horse quietly moving about, with the reins hanging loose on his neck, cropping the grass at her feet--and the black shadows of the forest behind--all this she took in like a picture, as, with one hand shading her eyes, she leant against a tree, watching the strange pair, and listening, in a halfdream, to the melancholy music of the song. “

4. Outras contribuições tem aparecido a este “ler duas vezes “ na Montanha Mágica e na Linha dos Nodos . Também a Rita Maltez me recordou uma conferencia proferida em 1977 por Jorge Luis Borges sobre A Divina Comédia , que trata deste assunto :

"Quero somente insistir no facto de ninguém ter o direito de se privar dessa felicidade, da Comédia, de lê-la de um modo ingénuo. Depois virão os comentários, o desejo de saber o que significa cada alusão mitológia, o ver como Dante pegou num grande verso de Virgílio e eventualmente até o melhorou ao traduzi-lo. Ao principio devemos ler o livro com fé de criança, abandonar-nos a ele; depois ele acompanha-nos até ao fim. A mim acompanhou-me durante muitos anos, e sei que mal o abra amanhã encontrarei coisas que não encontrei até agora. Sei que este livro irá para além da minha vigilia e das nossas vigílias."
 


NOTAS SOBRE O FORUM SOCIAL

(na sequência das anteriores )

1. Não é só a Convenção que decide por “consenso” . Segundo Domingos Lopes, do Conselho Português Para a Paz e Cooperação (uma organização prósoviética , agora sem a URSS ) também o Fórum aprovou a “metodologia do consenso” . Estas “metodologias” politicamente significam que quem manda , quem define o que é “consensual” não se quer mostrar . Controla a organização , controla o que é essencial nos documentos públicos , e , acima de tudo , define o sentido político do movimento , em particular no que ele não faz . Por exemplo , do Fórum Social nunca sairia uma manifestação contra Fidel ou contra Mugabe , ou uma moção apoiando o processo de paz israelo-palestiniano . Em tudo o resto , podem discutir muito , que é irrelevante .

2. Segundo o Público teria havido um debate terminológico sobre se se deveria colocar num texto final a expressão “anti-capitalismo” . A CGTP seria a favor , a União das Mutualidades Portuguesas seria contra . ( Mas o que é que está lá a fazer a União das Mutualidades Portuguesas , de que faz parte o Montepio Geral . Será que quem vai ao “corporate web site” do Montepio , os seus depositantes , os seus parceiros do European Group of Financial Institutions , imaginam que o seu dinheiro serve para pagar reuniões da esquerda radical ? ) .
Parece que chegaram a “consenso” em falar contra o "capitalismo neo-liberal"., uma coisa que ninguém sabe o que é . É mais uma palavra em ingsoc (veja-se nota anterior ) para designar “anti-capitalismo” . É nestas alturas que eu não troco a CGTP por estes manipuladores orwellianos , porque ao menos se toma mais a sério e é , como agora se diz , “mais transparente” ,

3. A corrupção tradicional à direita ( em bom rigor à direita , ao centro e à esquerda ) é mais fácil de identificar . À esquerda ninguém a vê onde ela está , mas ela está lá . Veja-se o Partido “Os Verdes” . “Os Verdes” foram uma invenção do PCP , com o objectivo de ocupar o espaço que temiam vir a ser tomado por qualquer partido mimético dos “Verdes” europeus (na época , os “Verdes” alemães estavam em alta ) e um estratagema , na melhor tradição comunista , para cativar jovens interessados pela ecologia . Os “Verdes” foram criados do nada , por gente do PCP e da JCP , com as filhas e os filhos dos “amigos” e “amigas” , nas sedes do PCP , com fundos do PCP e assinaturas do PCP . Como depois se veio a verificar, a sociedade portuguesa não era especialmente “verde” (deve ser por ser “fascista” como diz o Prof. Boaventura ) , e o Partido ficou dependurado num vazio . Os “Verdes” nunca foram a votos sozinhos , mas acrescentavam uma sigla a mais à CDU , e pura e simplesmente , fora do PCP , não existiam nem existem .
Onde é que está a corrupção ? Entre outras coisas nisto : este partido inexistente , de comunistas eleito nas listas comunistas , chega à Assembleia da República e constitui-se como Grupo Parlamentar . Recebe então fundos , funcionários , instalações , tempo de intervenção próprio , num milagre de multiplicação dos partidos que o PCP também já fazia com a Intervenção Democrática . É para isso que servem os “Verdes” .

9.6.03
 


TEXTOS DE CONTRACAPA

É pena que Nelson de Matos tenha desistido de continuar o seu blog Textos de Contracapa , e , se a sua decisão pode ser alterada , faço-lhe daqui um apelo a que reconsidere . As suas razões , que expõe numa nota chamada “Equívocos” , são duras ( e verdadeiras) para muito que se passa por aqui :

Não há dúvida, enganei-me.
Onde julgava poder haver debate de ideias, critica, conversa, troca de informações - há apenas, fora algumas honrosas excepções, disparate, insulto, exibicionismo, parvoeira, perda de tempo.
Daí que o que sobra é um espaço estreito e desinteressante, não muito diferente das conversas dos miúdos, trocando gracejos através da net, brincando às escondidas com os computadores do papá.
De facto não há tempo para isto, mesmo respeitando aqueles que procuram e insistem noutros níveis de conversa
. “

Não vi ninguém discutir o que Nelson de Matos escreveu e a sua atitude , mesmo quando o mais pequeno psicodrama suscita intenso interesse “comunitário” . Este silêncio da blogosfera não conta comigo , até porque se fosse assim o que ele disse ainda seria mais certeiro . Ora o blog de Nelson de Matos é (era ) um bom exemplo do melhor que se pode fazer com este meio e das suas virtualidades únicas . Para além da discussão dos problemas dos livros por quem conhece bem do que fala , uma das notas que ele colocou ( e que penso depois ter retirado ) tinha uma descrição das tentativas para “espiar” o conteúdo do livro de Rui Mateus sobre o PS , que revelava testemunhalmente o underground de algum jornalismo nacional .

É uma matéria tabu , de que ninguém fala , porque pouca gente tem coragem para falar . Alguns sabem , muitos calam , Nelson de Matos contou-o . Se o tivesse feito num jornal , como Nelson de Matos poderia fazer com a maior das facilidades , teria sido notícia , porque era notícia . Mas ele fê-lo no blog não para que ninguém desse por ela , mas porque contava encontrar um meio mais lento , menos espectacular , onde a permeabilidade do que se diz , testemunha ou opina ascende através de círculos cada vez mais qualificados até ao conhecimento geral . Não quis o escândalo , mas sim a compreeensão .

Foi por pensar que afinal se enganara no meio que desistiu . Penso que fez mal , porque os blogs estão a mudar e depressa e é preciso que continue a escrever o seu para que essa mudança seja mais rápida .

 


TRADUÇÃO DA ODISSEIA POR FREDERICO LOURENÇO

A tradução que Frederico Lourenço fez da Odisseia ( Edição da Livros Cotovia ) é um grande acontecimento para os que gostam de ler, de ler os clássicos , de ler Homero . E , lendo Homero , perceber como fomos feitos , como já estávamos feitos desde há muito tempo , como naquela viagem – onde muitas vezes deve ter brilhado um sol como o de hoje – nasceu um conhecimento de nós mesmos , fraquezas , terrores , dúvidas , tentações , coragens , cobardias , curiosidades , violências – tudo .
Não sei grego suficiente para julgar da tradução enquanto fidelidade e literalidade, mas li a Odisseia as vezes suficientes para saber se a tradução me restitui a irreprimível sedução de alguns dos seus episódios. Entre esses episódios está o de Nausícaa ( sigo a grafia de Frederico Lourenço , embora estivesse habituado a outra para alguns nomes ) e o da morte dos pretendentes , dois momentos muito diferentes do livro .

Veja-se a descrição da morte de dois pretendentes, a de Antínoo e a de Eurímaco . Quem escreveu isto viu morrer gente assim , porque , na enorme simplicidade da descrição , está a imagem certeira da convulsão da morte . Estas não são mortes de filme , são mortes reais em combate . Antinoo , o primeiro a morrer , morre surpreendido , quase à traição . Ulisses não lhe dá combate, mata-o de surpresa , como se disparasse para as suas costas , fazendo juz à sua qualidade de “astucioso” . Antínoo era de todos os pretendentes aquele que lhe poderia dar mais luta , e Ulisses não corre riscos :

Assim falou, e contra Antinoo disparou uma seta amarga.
Ora Antinoo estava no momento de levar à boca uma bela
taça, vaso dourado de asa dupla; pegara nela com as rnãos,
para beber um gole de vinho. 0 morticínio estava longe
dos seus pensamentos. Pois quem dos celebrantes do banquete
pensaria que um homem, isolado entre tantos, ainda que forte,
lhe traria a morte malévola e a escuridão do destino?

Mas Ulisses disparou contra ele e atingiu-o com a seta,
cuja ponta lhe atravessou por completo o pescoço macio.
Inclinou-se para o lado; a taça caiu-lhe das mãos ao ser
Atingido , e logo das narinas jorrou um jacto de másculo
sangue . Depressa afastou a mesa com um pontapé
e toda a comida foi parar ao chão, conspurcando o pão
e as carnes assadas.”



Eurímaco , pelo contrário , não é apanhado de surpresa . Ele vira o que se passara com Antínoo e reconhecera Ulisses . Pretende apazigua-lo, oferecendo-se, em nome de todos, para restituir os bens que roubara e repor a autoridade de Ulisses como rei de Itaca . Ulisses recusa “com sobrolho carregado”

"Eurímaco, nem que me désseis todo o vosso património,
tudo o que tendes agora e pudésseis reunir de outro sítio,
nem mesmo assirn eu reteria as mãos do morticínio, até que
todos vós pretendentes pagásseis o preço da transgressão.
0 que tendes agora à frente é isto: combater, ou então
fugir, se é que alguém pode fugir à morte e ao destino.
Mas não penso que nenhum de vós fuja à morte escarpada
."


E o combate inicia-se com o assalto de Eurímaco e , de novo a sua morte é uma morte real , pouco ficcionada :

Assim dizendo, desembainhou a espada de bronze
afiado, uma espada de dois gumes, e lancou-se contra
U!isses com um grito terrível! - mas ao mesmo tempo
disparou uma seta o divino Ulisses, acertando-lhe no peito,
ao lado do mamilo: a seta veloz atingira-o no fígado.
Das mãos Eurímaco deixou cair a espada; contorcendo-se
por cima da mesa, dobrou-se e caiu, atirando para o chão
a comida e a taça de asa dupla. Bateu na terra com a testa
na agonia da morte; e esperneando contra a cadeira, fê-la abanar
com ambos os pés. Mas depois o nevoeiro lhe desceu sobre os olhos
.”

Está intacto o brilho original com que , ao ler pela primeira vez estas páginas , a cena violenta me impressionou . Magnifica tradução .

8.6.03
 


UM PENSAMENTO ANTIDEMOCRÁTICO

Os Movimentos Sociais estipulam como ponto central a ideia de que não há democracia sem participação e sem direito de iniciativa e de associação. A relação entre o indivíduo e o Estado ou é marcada pela participação ou não é democrática. A participação, como tal, não pode ser um direito formal que é respeitado pelas instituições ao sabor dos seus interesses. Ou as opiniões participam das decisões, isto é, ou são meios de poder; ou então a participação é uma ilusão.

( Do projecto de declaração da auto-intitulada Assembleia de Movimentos Sociais do Fórum Social Português )

Aqui está uma interessante proposta , a que é manifestada pela última frase . Presume-se , senão nada teria sentido , que essas “opiniões” não são as que se exprimem pelo voto regular para as instituições democráticas . Serão “opiniões” “socialmente” expressas . Como sabemos quais são ? Como sabemos da sua relevância no conjunto da população ? Por sondagens ? Por manifestações ? Por quem as exprime ? Pelos programas pimba da televisão , pelo Fórum da TSF ? Pelo activismo de quem as defende ? Quem é que escolhe entre as “opiniões” contraditórias ? É o “anti-racismo” politizado uma opinião melhor do que o racismo populista , mesmo admitindo que este último é muito mais “opinião” ? E as “opiniões” a favor da pena de morte , da expulsão dos emigrantes , da proibição dos partidos, contra a central de tratamento de lixos na freguesia , a favor do “progresso” que traz um empreendimento turístico , ou da liberdade de se construir como se quiser num parque natural , devem ter “poder”?
A proposta é liminarmente anti-democrática e , se fosse tomada a sério , fortaleceria o populismo de direita . Já hoje , mais do que o que devem , os políticos governam por sondagens . Infelizmente para os “movimentos sociais” as “opiniões” mais significativas são aquelas de que eles não gostam , mas , no fundo , eles são elitistas e vanguardistas e as “opiniões” que deveriam contar são as que eles defendem . Não é uma “democracia de qualidade” que propugnam , é um regime não-democrático , em que activistas ilustrados , intelectuais de esquerda , com ou sem “líder máximo” , governariam sem ter essa inconveniência que é ir a votos e aceitar a lei . Eles não o quererão admitir , mas é Chávez da Venezuela o modelo proposto .

 


SOBRE UM REUNIÃO DA ESQUERDA PORTUGUESA

1. Um dos aspectos revolucionários do 1984 de Orwell foi mostrar como o controle da linguagem, o controle da designação era uma das formas últimas do poder. O ingsoc , a linguagem do “english socialism” era a materialização desta ideia , e o seu poder vinha de chamar à guerra “paz” . Os que chamam à guerra “paz” ganham a guerra – e foi isso que durante décadas os “movimentos pacifistas” de inspiração soviética tentaram fazer . Hoje conhecem-se milhares de documentos, memórias , testemunhos , relatos que mostram como esses movimentos eram estritamente controlados pelo PCUS e como os seus objectivos serviam a política externa soviética e os seus objectivos militares . Uma sobrevivência desses movimentos, o Conselho Português para a Paz e a Cooperação , é um dos participantes do Fórum Social Português , porque certamente é um significativo “movimento social” ….

2. Voltemos a Orwell , porque é o mundo orwelliano que encontramos no Fórum Social . Esta reunião que se está a realizar em Lisboa e que se intitula Fórum Social é um bom exemplo de como os equívocos de todo o género , com intencionalidade política tem sucesso na operação orwelliana de serem designados não em português mas em ingsoc .
O modo como o Fórum Social e o seu principal mentor público Boaventura de Sousa Santos – não necessariamente o que melhor representa a sua estrutura política real , que deveria ter como face Louçã , mas não convém – pretendem apresentar a reunião é como uma benévola e pacífica assembleia de pessoas interessadas na coisa pública , voluntários do social , ardendo de fazer participar todos os portugueses numa “democracia desertificada” que os afasta deliberadamente da participação política . Boaventura queria inclusive que membros do PSD e PP lá estivessem, desde que “obviamente aceitassem a declaração de Porto Alegre” . E , se procurar um pouco , encontrará alguns inocentes úteis para lá estar , até porque parece que duas câmaras sociais-democratas , incluindo a de Lisboa , estão representadas . Isto é um mecanismo conhecido desde a guerra fria : o sucesso da operação do ingsoc é exactamente que a face pública seja o mais possível afastada da face real , ou , se se quiser ir a Salazar , que o que pareça seja .


3. O Fórum deve ser descrito pelo que é , não pelo que diz ser . O que é – leia-se a lista das “organizações “ que dele fazem parte (organizações vão em aspas porque algumas não existem a não ser no papel e servem apenas para engrossar estas listas ) - é uma reunião da esquerda portuguesa , em que partidos como o PS e em parte o PCP , são arrastados pelas fracções mais radicais dessa esquerda , em particular , pelo Bloco de Esquerda e a miríade de pequenos grupos órfãos do comunismo e do “socialismo participativo” .
O facto de dizer “miríade” não significa que englobem muita gente , muitas vezes os mesmos fazem parte de várias organizações , mas que geram o milagre da multiplicação dos nomes . Estalinistas , pintasilguistas , trotsquistas , ex-comunistas e comunistas “renovadores” que aderiram à “anti-globalização” , ecologistas anti-capitalistas , leitores do Le Monde Diplomatique , católicos progressistas ( um dos últimos alfobres do marxismo ) , etc. , etc. O que acontece é que o ingsoc impede de os nomear assim porque , pelo seu efeito de revelação , desocultam o que se pretende ocultar debaixo da pacífica , e auto-legitimadora , designação de “movimento social” . Ora um “movimento social” não se proclama a si próprio , ou é ou não é.

(Continuará, "penso eu de que" ...)

7.6.03
 


NO OUTRO BLOG

Nos Estudos sobre o Comunismo há informações novas e elementos para a história do trotsquismo e do maoismo em Portugal .

6.6.03
 


UM MÊS

O Abrupto tem um mês . Teve nas últimas três semanas trinta mil “pageviews” ( os contadores divergem um pouco para mais ou para menos , alguém me pode dizer qual lhe parece o mais fiável ? ) , foi saudado , referido , comentado e atacado em dezenas de outros blogs , e , na bolsa virtual dos blogs , as “acções” subiram de 0.25 cêntimos , para 20.86 dólares . É certamente o efeito da novidade , e passará , mas quem escreve ou dá a sua opinião , gosta de ser lido . O resto é hipocrisia .

A modo de agradecimento a todos , o Abrupto , fá-lo com mais um poema de Sá de Miranda , sob cuja égide começou :

Comigo me desavim,
Vejo-me em grande perigo;
Não posso viver comigo,
Não posso fugir de mim.

Antes que este mal tivesse,
Da outra gente fugia.
Agora já fugiria
De mim se de mim pudesse.

Que cabo espero ou que fim,
Deste cuidado que sigo,
Pois trago a mim comigo,
Tamanho imigo de mim.

 


AGENDA

De vez em quando ajuda-me a organizar o blog fazer uma espécie de agenda. Ao mesmo tempo aviso os meus leitores do que aí vem , ou do que , com muito optimismo , me interessa vir a tratar . Depois se verá se não há demasiada fome … Até agora tenho conseguido cumprir a maioria das anteriores agendas, embora ainda haja matéria em falta :


1. Cinema francês : continua em falta, mas já comprei alguns dos filmes que me foram recomendados e que não tinha visto . Como não quero responder aos meus críticos sem conhecimento de causa, terá que esperar .

2. Continuação da conversa com a Montanha Mágica .

3. Notas sobre o jornalismo político em Portugal : falta uma nota sobre a “Escola do Independente”, a que acrescentarei uma adenda sobre a influência desta “escola” nos blogs.

4. Actualização da série dos objectos em extinção e da “leitura duas vezes” com as contribuições que tem chegado .

5. Uma nota sobre intimidade, privacidade e exposição pública .

6. Um texto sobre a utopia dos blogs, na sequência de outras utopias sobre a rede .

7. Voltar à análise do MyLifeBits , o programa da Microsoft que se destina a permitir o armazenamento da memória , um backup da vida toda . Escrevi um artigo no Público que foi um dos que menor resposta teve, mas o assunto continua a interessar-me muito e tem relação com a questão do tempo .

8. Nota sobre a tradução de Frederico Lourenço da Odisseia – coisa magnífica!

9. Continua a haver muito correio atrasado . Peço paciência aos que esperam …

 


SOBRE O ARTIGO DO PÚBLICO

Acompanhei algum debate nos blogs sobre o artigo que escrevi para o Público de ontem sobre o Preâmbulo do projecto da Constituição Europeia . Tive também uma animada conversa sobre o artigo com um grupo de meus colegas socialistas do PE , que a greve dos controladores aéreos franceses atirou à última hora para o mesmo avião que tomei em Bâle . O avião é um daqueles pequenos jactos brasileiros da Portugália pelo que viemos todos literalmente em cima uns dos outros , com o Público e o 24 Horas como food for thought .
O que eu queria precisar era o seguinte : a referência ao papel histórico do cristianismo é indispensável num texto que parte da herança clássica greco-latina para chegar ao Século das Luzes . Omitindo-se o cristianismo , a referência solitária ao Século das Luzes ganha um outro relevo e só pode explicar-se numa lógica de exclusão .
O que defendo é a inclusão de uma referência histórica insubstituível, tão insubstituível como a referência ao mundo greco-latino . Ora nestes termos esta referência não quer dizer que só pode estar na Europa quem for cristão . Bem pelo contrário , penso que nenhuma razão religiosa deve excluir países de maioria muçulmana e defendo a entrada da Turquia quando cumprir plenamente as condições de adesão , principalmente em matérias como os direitos humanos e a protecção das minorias .

5.6.03
 


DEZINFORMATZIA

De novo , continuam as falsificações deliberadas de declarações e entrevistas de dirigentes americanos na lista negra dos anti-americanos europeus . De novo , continuam os exercícios de desonestidade intelectual . De novo , o que disse Wolfowitz é falsificado . Aqui está o que ele disse e o contexto :

"The United States hopes to end the nuclear standoff with North Korea by putting economic pressure on the impoverished nation, U.S. Deputy Defense Secretary Paul Wolfowitz said Saturday. North Korea would respond to economic pressure, unlike Iraq, where military action was necessary because the country's oil money was propping up the regime, Wolfowitz told delegates at the second annual Asia Security Conference in Singapore."
"The country is teetering on the edge of economic collapse," Wolfowitz said. "That I believe is a major point of leverage." "The primary difference between North Korea and Iraq is that we had virtually no economic options in Iraq because the country floats on a sea of oil," he said. Wolfowitz did not elaborate on how Washington intends to put economic pressure on North Korea, but said other countries in the region helping it should send a message that "they're not going to continue doing that if North Korea continues down the road it's on
."

No Público , que tinha obrigação de ser mais rigoroso , isto transforma-se nisto


"Número dois" do Pentágono Wolfowitz admite que petróleo justificou guerra contra o Iraque

Pedro Caldeira Rodrigues

O "número dois" do Pentágono, Paul Wolfowitz, disse ontem que o principal motivo da acção militar contra o Iraque foi o petróleo. O secretário de Estado adjunto da Defesa, que já tinha fragilizado a posição do chefe do Governo britânico, Tony Blair, sobre a polémica em torno das armas de destruição maciça (ADM) ao descrevê-las como "justificação burocrática" para a guerra, foi agora mais longe ao afirmar que a invasão militar pode ser justificada pelo facto de o Iraque "nadar" em petróleo.

De acordo com a edição "online" do jornal "The Guardian", Wolfowitz emitiu estas declarações quando discursava perante delegados numa cimeira sobre segurança na Ásia e que decorreu em Singapura no passado fim-de-semana. Ao ser questionado pelo facto de uma potência nuclear como a Coreia do Norte merecer uma abordagem diferente do Iraque, o "falcão" do Pentágono admitiu que a principal diferença entre os dois países "é que economicamente não tínhamos escolha no Iraque. O país nada num mar de petróleo
".

Parecido , não é ?

 


PORQUÊ ?

O avanço do processo de paz entre israelitas e palestinianos só pode ser saudado por todos os que genuinamente desejam a estabilidade , a paz e a justiça naquela parte do mundo . Não adianta ser optimista , mas talvez se possa ser menos pessimista , o que já não é mau . Apesar disso , o tema do dia de ontem e do de hoje , na agenda dos jornalistas que aqui estão era outro : o não aparecimento das armas de destruição massiva . Porque não ? Eu também penso que tudo deve ser esclarecido ; se existiram e ainda não foram encontradas , se existiram e foram destruídas , ou se não existiam e havia erros nas informações , ou se essas informações foram deturpadas para justificar os objectivos de guerra . São diferentes hipóteses e todas devem estar em aberto . Algumas tem sérias consequências para a credibilidade dos EUA e Reino Unido . Não adianta iludi-lo , mas ainda é prematuro tirar conclusões .

Mas porque carga de água este é o tema mais excitante na agenda internacional ? Tenho pouca inocência sobre a razão porque isso acontece : trata-se de esconder ou minimizar que a situação no Médio Oriente está bem longe de ser a que foi prevista por toda a esquerda portuguesa e a direita que se lhe uniu . É por isso que penso , que muita da indignação sobre o conflito israelo-palestiniano lhes serviu de pretexto , e que nem sequer contribuem para a esperança da sua resolução . Recordam-se de alguém , dos opositores ao conflito iraquiano em Portugal , saudar o processo de paz ? Não me lembro de ninguém

4.6.03
 


BREVES

1. O poema do Vasco que se encontra antes destas "breves" é quase de certeza o primeiro em português a usar a palavra blog no seu texto . O Vasco tem outros recordes e premières como o de ser o poeta português que mais decassílabos escreveu , contando com os mais de 14000 da tradução da Divina Comédia e os cerca de 8000 da tradução ainda inédita do Canzoniere de Petrarca . Mais do que Camões .


2. Epidemia do "arraso" . Estamos perante outra epidemia do verbo "arrasar" nos jornais , fenómeno periódico e altamente contagioso . "João Soares arrasa Ferro" deve ter sido o doente original deste novo surto . Depois foi "relatório de não sei de quê arrasa política de não sei de quê" , "relatório da UE arrasa agricultura portuguesa" , etc , etc. Eu conheço a doença porque também já fui "arrasado" . Muito gostam eles de "arrasar" , do Diário de Notícias ao Público , porque esta é uma doença da imprensa escrita . Ninguém se interroga sobre o uso deste verbo tão pouco descomprometido pelos jornalistas ? Porque razão não escrevem "criticar" , mesmo qualificando a dureza da crítica ? Agora "arrasar" implica um julgamento de valor , sugere a eficácia ou a razão do "arrasador" . Para quem lê fica de imediato uma impressão indelével de desequilíbrio entre quem "arrasa" e quem é "arrasado" .

3. Seguindo a iniciativa do Valete Frates , também cito o texto original da entrevista de Wolfowitz à Vanity Fair , objecto de uma típica operação de desinformação , seguida depois por flagrantes exibições de desonestidade intelectual , Aqui fica citada a partir da transcrição oficial da gravação :

"Q: Was that one of the arguments that was raised early on by you and others that Iraq actually does connect, not to connect the dots too much, but the relationship between Saudi Arabia, our troops being there, and bin Laden's rage about that, which he's built on so many years, also connects the World Trade Center attacks, that there's a logic of motive or something like that? Or does that read too much into --

Wolfowitz: No, I think it happens to be correct. The truth is that for reasons that have a lot to do with the U.S. government bureaucracy we settled on the one issue that everyone could agree on which was weapons of mass destruction as the core reason, but -- hold on one second --

(Pause)

Kellems: Sam there may be some value in clarity on the point that it may take years to get post-Saddam Iraq right. It can be easily misconstrued, especially when it comes to --

Wolfowitz: -- there have always been three fundamental concerns. One is weapons of mass destruction, the second is support for terrorism, the third is the criminal treatment of the Iraqi people. Actually I guess you could say there's a fourth overriding one which is the connection between the first two. Sorry, hold on again.

Kellems: By the way, it's probably the longest uninterrupted phone conversation I've witnessed, so --

Q: This is extraordinary.

Kellems: You had good timing.

Q: I'm really grateful.

Wolfowitz: To wrap it up.
The third one by itself, as I think I said earlier, is a reason to help the Iraqis but it's not a reason to put American kids' lives at risk, certainly not on the scale we did it. That second issue about links to terrorism is the one about which there's the most disagreement within the bureaucracy, even though I think everyone agrees that we killed 100 or so of an al Qaeda group in northern Iraq in this recent go-around, that we've arrested that al Qaeda guy in Baghdad who was connected to this guy Zarqawi whom Powell spoke about in his UN presentation.
"

3.6.03
 


VASCO GRAÇA MOURA INÉDITO PARA OS LEITORES DO ABRUPTO

Quando , há quinze dias , no Mil Folhas do Público , a Isabel Coutinho falou do Abrupto , escreveu : "só me apetecia que o Vasco Graça Moura também aderisse à moda dos blogs" . O pedido teve eco nalguns blogs , na Janela Indiscreta por exemplo . Eu falei ao Vasco Graça Moura e pedi-lhe um poema "de resposta" no Abrupto . O Vasco não se limitou ao poema para o blog , mas faz a divulgação "em première mundial" de um poema seu trilingue . Aqui fica uma nota do Vasco , o poema para o blog e a " aretnap a pantera " .

____________________________


"Há meia dúzia de anos traduzi "A pantera", uma das peças mais célebres dos Neue Gedichte do Rilke, tendo-a incluído em apêndice à minha tradução dos Sonetos a Orfeu. Há poucas semanas, o Joaquim-Francisco Coelho escreveu-me de Harvard, onde é professor, a enviar-me a sua própria tradução da mesma pantera. Achei que o facto de ele ser brasileiro e eu português tinha alguma influência nas nossas versões. E dias depois fiz o ciclo que lhe envio para o seu blog, em première mundial (!!!), por me parecer que corresponde a algumas das solicitações que recebeu a meu respeito...
Trata-se afinal de um espelhar e contra-espelhar de ironias, em que às tantas o próprio Rilke escreve a Lou Andréas-Salomé, conversa com Rodin, engendra um soneto e "posa" para a pantera...
A qual, se estivesse na Internet, por certo se poria também a fazer um soneto. Qualquer coisa deste tipo:


não há nada no mundo que me pague
para aqui estar. não há nada que jogue
e nada que responda ou faça blague
por eu, panteramente, estar no blog.

não há verso do rilke que me afague,
por mais que o vgm aqui dialogue
com o jpp, quer me embriague,
quer passe fome, ou me espreguice e drogue.

sou a pantera fora da internet.
passo lá por acaso. depois saio
e volto às grades onde alguém me mete.

e rujo e rosno e mordo e não me ensaio
nada nas piruetas da disquette
de apagá-la depois. só me distraio.


Saudações ao seu público bloguista.
Vasco Graça Moura

_____________________________

aretnap a pantera

(para Joaquim Francisco Coelho, por termos ambos traduzido
“Der Panther”, de Rainer Maria Rilke)


1.

fomos os dois à caça da pantera
que estava já da jaula sob o tecto;
na mesma língua e em cada idiolecto,
apanhá-la inteirinha, quem nos dera!

mas clonado, que fosse não se espera
dorso verbal em músculo inquieto,
e ao lê-lo, eu me felino e me arquitecto,
pois me pantero, e mais, se reverbera

noutro registo a língua subtil que,
de cada vez que a dupla se faz frente,
é jogo especular no abismo, acaso

devíamos levar a rainer rilke
esta parelha opaca e transparente
à trela, quando formos ao parnaso.

2.

as três irmãs, não digo as de tchekov,
as três panteras, sendo uma mais velha
que sempre as outras duas vê de esguelha
e a quem a semelhança não comove,

vêm rosnar-me à cabeça, sem que prove
seu coração, nem musa, voz, centelha,
céu, chão, mar, bicho, flor, fruto, bodelha,
nem quando faz calor, ou venta, ou chove.

são pura indiferença que imagino
saída da retina e da rotina
que em oxímoro as veja e traga e leve,

e afirme e negue o seu verbal destino
que mesmo no que afina, desafina:
panteras podem ser da cor da neve.

3.

as feras vivem junto de um reboco
sombrio de argamassa com o mundo
e o seu próprio rugir é vagabundo,
como se à noite fosse apenas troco

de o coração, notado num bloco,
a quente, a frio, fúnebre e jocundo,
dever vazar o sangue até ao fundo
dos muros do silêncio. e o tempo invoco

para que esse rugir, ao dar a volta,
e ao rasgar-se nas farpas de uma vala,
se faça um pó distante amortecido

e volte a concentrar-se e, posto à solta,
se transforme em angústia e a dispará-la
venha o seu cavo eco em meu ouvido.


4.

atrás das barras lia-se o felino,
e eram catorze, próprias do soneto,
entrecortando o ágil dorso preto,
elástico, estirado, repentino.

depois, quando ao papel cabeça inclino,
alargo da prisão o esqueleto
e quando desarmado nela a meto,
já quase sem cautelas me rotino.

porém, não esperava ver, após
este preliminar de uma abordagem,
que tanto pedigree ali se espere,

a reunir pantera e albatrós
e tigre e cotovia, em homenagem,
a rilke, borges, keats, baudelaire.

5.

quando a pantera, liebchen, és tu,
feita distância concentrada em mim,
e entre anestesia e frenesim
não sei que te dizer em paris, lou,

se nada de mim ponho agora a nu
e dentro apenas quero, de marfim
e arte nova, o ser que digo assim,
em arabesco, opalas e bambu.

talvez estejas farta, eslava minha,
por isso que a pantera te recorde
relâmpagos da alma nas estepes

e a própria solidão nadando asinha
nas veias da pantera que te morde
os tornozelos quando ao dorso trepes.

6.

volto a fechar a jaula e não me iludo:
três panteras assim não são demais,
geram-se umas às outras nos sinais,
podem multiplicar o seu veludo,

e como no xadrês, como no judo,
jogo e real são sempre desiguais.
a uma, à sorte, as frases cordiais:
o que é para ela o nada? o que é o tudo?

que deuses esmaltaram os seus dentes?
mandando o seu leitor se faire foutre
em mudos arremedos evidentes,

de que carne da alma então se nutre?
ou acaso desfaz, como um abutre,
um fígado já solto das correntes?

7.

num pesadelo, quando a vi, ao calhas,
pantera de palavras, traduzi-a
e com o óleo de uma almotolia
no pêlo, escorregou por entre as falhas;

comeu na ida todas as migalhas
que o sono em sobressaltos produzia
automáticamente na teoria
da tradução e em muitas outras tralhas.

puta pantera, não abandonavas
a língua de partida e o lampejo
com que na tua pele a recitavas,

mesmo que a de chegada, em teu bocejo,
não te poupasse ao oco das aljavas
e dele te fizesse um quase arpejo.

8.

ah, espreitar na selva entre lianas,
para entrever o brilho amarelado
de uns olhos que podia ter pintado
rousseau, douanier cheio de ganas!

ah, coração modelo para as manas
brontë, ou para um petrarca desolado
que expôs da humana fera um bom bocado
até camões cantar tigres hircanas!

e era o luto na vida, diz pessoa,
que não sabia nada de panteras,
nem de jaula que a luz furtiva acoite

se na fenda das pálpebras se coa,
trazendo à nossa era as outras eras,
assassinando e dando vida à noite.

9.

vai-se a pantera em sombra, extravagando.
secaram as palavras no seu fojo.
ficaram só as expressões de nojo
de alguém poder morrer, sem saber quando

o bicho voltará, agoniando
as vísceras e a alma. e havendo bojo,
esconderijos, luras, silvas, tojo,
que se usam para a ir camuflando,

não se sabe em verdade onde ela está:
pode voltar ou não. pode rugir,
fugir, morder o tempo atrás das barras.

pode vir pela noite. e oxalá
não fique feita em pedra a encardir.
e despedace a lira em suas garras.

10.

- chez vous, la forme s'ouvre, mon cher maître,
au vrai insaisissable. je voudrais
en faire autant, pourtant un coup de dès
ne perce ni les bêtes, ni leur être...

- la post-modernité avant la lettre,
vos mots pourront peut-être en dire assez,
laissez-les miroiter, pétrissez-les...
- mais je veux m'effacer et disparaître

pour n'exprimer que leur an sich dans
leur existence pure et leurs élans...
- si un chat est un chat, mon cher poète,

il sera chatoyant, mais grâce à vous...
- ich weiss, monsieur rodin, merci beaucoup.
la panthère! paris est une fête!

11.

Der Panther befand sich in der Leere tief
des gesteinerten Herzens. Da verbrannte
kein Blut mehr. Zwar nur die geahnte
traurige Enttäuschung des Daseins rief.

In seinen Augen langsam verschlief
des Tiers Erinnerung, vielleicht die sogenannte
Regenbogenwelt, vielleicht die gespannte
Muskelkraft, die dann um nichts griff.

Der Raum ist begrenzt und lautlos. Hast Du
den Panther, o Gott, mit der Leier
noch einmal gejagt und geschlagen?

Ach, singe nicht mehr, mach die Augen zu,
hör mal dieses Geräusch, der Lüge zur Feier:
damit wird der Überträger übertragen.

11.

no oco fundo onde a pantera estava
do coração de pedra, não ardia
o sangue já. triste se pressentia
o apelo do existir que se enganava.

devagar em seus olhos se ensonava
a lembrança animal, talvez um dia
o mundo do arco-íris; dir-se-ia
que a força muscular nada agarrava.

o espaço é limitado e mudo. tu,
acaso o bicho agora com a lira,
caçaste, ó deus, deixando-o aturdido?

não cantes mais e fecha os olhos no
ruído que celebra tal mentira:
assim o tradutor é traduzido.

12.

farta de ver um homem de olhos claros
e bigode mongol parado em frente
às grades, a pantera astutamente
concebeu um poema. nos preparos

foi notando de cor os termos raros,
dando sinais que fossem passar rente,
mas sem melancolia, ao vulto em gente,
especado e mordido com aparos

de poeta em cursivo. esse retrato,
sem subjectividade de animal,
no vulto atrás das grades intuiu.

e o ponto de visão dela era exacto:
equidistante às barras de metal
era um e outro. e ela desistiu.

13.

nunca ao pêlo das sílabas escape
alguma malha feita pelas sete
letras reordenadas: aretnap,
panrate, terapan ou naparet,

ou, se se preferir, mesmo etarnap:
em anagramas vários se reflecte
(já agora samargana) o chape-chape
em que o real no verbo se derrete.

mas não sendo a pantera um leopardo,
nem lince da malcata, quando não
odrapoel ou ecnil seria,

o arbítrio de seu nome é sem resguardo,
ãv palavra vã no espelho vão,
sonoridade a silabar bravia.

14.

para encontrar oculta a simetria
além do espelho, uivando pelas luas,
não penses que a pantera individuas
tendo em conta o que sabes. a ironia

tecnicamente ruge e acrobacia
não põe à vista quando faz das suas,
a devorar também as carnes cruas
dos nomes às avessas. sangraria

o engano em trompe l'oeil, curto-circuito,
relâmpago inefável? o que for
aqui perde o sentido. é só fortuito.

as outras qualidades lhe vai pôr,
regulando a medida a seu intuito,
e desmedindo-a, o próprio tratador.

15.

e voltámos da caça, remoendo
efeitos de prosódia e de sintaxe.
cada pantera é assim: primeiro dá-se
a ver, quando ninguém a está vendo.

talvez deitar-lhe à pele algum remendo
que a noite porventura facultasse,
quando a palavra a mais a esburacasse
mas buracos a menos fosse tendo...

que importa? ficará fotografia
da expedição: armados de canetas
e com um pé no dorso do animal.

há uma pantera tensa em cada dia,
um ser que é de florestas e provetas,
todo em literatura ocidental.



dois subprodutos


capriccio a

“pan-pan-te-te-te-te-ra”, gaguejava
um epí-pí-pí-pí-pí-go-gono triste,
“a con-con-di-di-ção es-cra-cra-cra-va,
al-gu-gu-gu-ma vez sen-tis-tis-tis-te?

ven-do o chi-chi-chi-co-co-tem ris-ris-te
que o tra-tra-tra-tra-dor des-des-tra-tra-va?
a tu-tu-tu-a fau-fau-ce bra-bra-va
quan-quan-quan-tas ve-ve-zes a-bris-bris-te?

é cer-to-to-to que eu ga-ga-gue-gue-jo,
to-to-da-vi-vi-via pre-ve-ve-jo
que-que vais mor-mor-der o en-go-go-go-do

e à noi-noi-noi-te fi-fi-fi-carás
so-sob o bi-bi-co de ga-ga-gás,
pois ten-ten-tens o tem-tem-po-po todo”.


capriccio b

o verso errado, marília, tem
uma sílaba a menos, alguma a mais,
ou, mesmo duas sendo, às doze ou treze chega,
e é sempre assim, quando ora escorrega
de nove para dez ou onze e também

se desmede das medidas em que porém
quando acerta fora do sítio e sem
saber técnicas heróicas que emprega,
ou sáficas, sem quarta, oitava sílaba, nega
o verso regular que lhe convém.

cruzes canhoto, que mais difícil é
fazer mal do que fazer bem e aqui
é tempo de desculpar a pantera,

que assim desmelodiosa, posta à ré,
não faz sentido nenhum e nem a vi,
nem revi, nem trevi, nem tetr... (bolas!) como era.

VASCO GRAçA MOURA
 


NOTAS EUROPEIAS


1. Ontem , à chegada a Estrasburgo, o tempo estava de tempestade . Quente e húmido , denso . Estou feito , como os meus colegas, animal de carga puxando uma mala com rodas na transumância para a Alsácia . È fácil aos locais identificar os membros daquele grupo de mala de rodas que cai aqui uma vez por mês e , só cai à força , porque os franceses , prevenidos , colocaram nos tratados europeus a obrigação de vir a Estrasburgo doze vezes ao ano e o Parlamento não tem o poder de escolher a sua sede . Imagino Sir David Attemborough , dependurado numa cornija , a gozar com a "exotic species" destas aves e os seus estranhos hábitos.

2. À entrada do edifício estava um grupo folclórico alemão ou austríaco , dos muitos que visitam a "instituição" . Como as bandas filarmónicas portuguesas , vem da província profunda , vestidos de azul e branco e chapelinhos tiroleses , com majoretes e cornos de caça , fazendo um grande fragor com os metais e percussão , enchendo de barulho o pátio de entrada . Quem conheça o Parlamento em Estrasburgo sabe que é uma espécie de bunker prisional (parece que o arquitecto que o fez era especialista em prisões ) e esse pátio sem vistas é o centro de uma oval de betão e vidro , triste e cinzenta (castanha) . Apesar de tudo , a banda azul e branca ( parecia o FCP ) era a única alegria e o som marcial animava as paredes . Do mal o menos .

2. Hoje está um sol radioso em Estrasburgo e estas cidades do Norte mostram uma capacidade para se virar para a luz , que não existe em Portugal . De repente tudo muda , tudo vem para a rua , tudo se solta . Passo pelos livros . Estrasburgo tem várias boas livrarias e alfarrabistas ; a Kleber é a melhor , a FNAC muito de província , a Quai des Brumes forte na literatura , muito francesa , muito Tel Quel , a Oberlin , forte da sua idade , nascida em 1817 , e a Bouquinerie des Soeurs e L' Insomniaque , bons alfarrabistas . Nas rua há também muitas bancas de livros . Eu e o Vasco fazemos verdadeiros saques , a mais das vezes nos alfarrabistas , porque a edição francesa é prolixa mas nem sempre interessante .

3. No entanto , há especialidades estrasburguesas como a teologia , em que todas as livrarias e alfarrabistas são bons . Estrasburgo é uma cidade católica , protestante e judaica , típica de uma "velha Europa" que , para os lados de lá da fronteira , Hitler destruiu . Tem uma célebre Faculdade de Teologia Protestante e uma tradição sólida de pensamento protestante , mas há muitos e bons livros de teologia judaica e católica . Daqui a uns anos não faltará a teologia islâmica , se se tiver em conta que , em cidades como Mulhouse , onde trabalham muitos portugueses , a segunda religião é a muçulmana . A taxa de natalidade fará o resto .

4. Para cá chegar passei pela fronteira franco-suiça , em pé de guerra por causa do G8 . Os manifestantes anti-globalização versão "anarquista" (suspeito que esta designação é incorrecta e desculpabilizante , porque muitos são apenas esquerdistas radicais e membros das organizações anti-globalizadoras com face mais pacífica ) entretém-se a destruir lojas em Genebra e Lausana . A amplitude dos conflitos é grave , mas há uma estranha complacência com estes "casseurs" . Se fossem da extrema-direita , quantos editoriais inflamados se escreveriam , quantos gritos que a Republica estava em perigo se ouviriam ?

4. Se entrarmos num gabinete de um dirigente regionalista alemão de um dos länder , estarão três bandeiras : da Alemanha , da UE e da região , o mesmo na Itália . Mas se fizermos idêntica visita na Catalunha ou no País Basco estarão apenas duas : da UE e da região . É por isto que a ideia de uma "Europa das regiões" , implicando uma relação directa das instâncias europeias com as regiões , tem todos os riscos . Sublinhe-se de passagem , que o federalismo alemão é muito aberto quanto à soberania nacional , mas não admite que se toque , com um dedo sequer , nos poderes dos länder .

1.6.03
 


UMA HISTÓRIA RUSSA

Esta é uma história que ocorreu comigo em Moscovo, nos últimos anos da URSS e nos primeiros da Rússia, uma história exemplar das atitudes das pessoas comuns, que usei a semana passada numa sessão mais ou menos oficial, exactamente para ilustrar esse ponto de “bom senso” económico. Com pequenas alterações aqui fica.

Vivia-se então um período de transição caótico. Uma parte da nomenklatura soviética estava a apropriar-se dos bens que tinham qualquer valor e que controlavam enquanto burocratas. Ou seja a máfia russa estava a formar-se. Num desses anos fui a um restaurante na periferia de Moscovo que tinha acabado de abrir, e que pertencia certamente a esse novo grupo social emergente, entre a criminalidade e o negócio. Funcionando numa antiga residência académica, (no sentido russo de pertencer à Academia) de propriedade vaguíssima, o espaço tinha todos os sinais do novo-riquismo: veludos, baixelas de qualidade, um menu realista (o que era raro porque na URSS nunca havia qualquer relação entre o menu e o que se podia comer) e um serviço garantido por antigos estudantes cubanos de engenharia nuclear, que tinham ficado desamparados em Moscovo quando o projecto soviético de uma central nuclear em Cuba foi interrompido por Gorbachov. Era um sítio curioso e uma população curiosa . Quando me sentei , e durante quase todo o jantar , não estava ninguém a não ser uma mesa longínqua em que um homem taciturno comia ao mesmo tempo que tomava notas num bloco . À sua frente uma rapariga muito jovem e bonita comia também em perfeito silêncio . Apesar de ambos estarem em frente um do outro , não falavam .

Periodicamente vinha o cozinheiro da cozinha e trocava duas ou três palavras com o homem taciturno, a seguir um criado, depois outro e, frequentes vezes, uma senhora que fazia o papel de chefe de mesa. Os contactos eram brevíssimos, regulares, reverenciais e discretos. Presumi e bem que quem mandava era o homem. Imaginem pois qual a minha surpresa quando a senhora que chefiava o serviço das mesas se identificou, sem saber que falava com um conterrâneo, como portuguesa. Ali, no meio dos súburbios moscovitas, já na transição com a floresta russa, estava uma vianense, saída da sua Viana de Castelo para ir para Paris e de Paris saindo para viver com o georgiano que era essa a novel nacionalidade do taciturno. Este “possuía” o restaurante e um ou dois casinos flutuantes em Odessa, um património sobre o qual, o mínimo que se possa dizer, é que era bizarro.

Mas a história verdadeiramente começa aqui. Contente como eu de encontrar um patrício no mais imprevisto dos lugares, sentou-se na mesa e começou a contar das suas dificuldades em gerir o restaurante e deu-me a melhor lição que jamais aprendi não só sobre a economia soviética, mas sobre como as atitudes comuns, que nos são muitas vezes invisíveis, que nós não nos apercebemos, porque não temos distanciação, são as traves mestras do progresso ou do atraso económico. Ao mesmo tempo, mostrava-me como era díficil mudar aquilo que chamamos habitualmente as “mentalidades”.

Ela explicou-me primeiro a razão porque escolhera ter empregados cubanos e não russos. Os russos, dizia ela, habituados a trabalhar num contexto altamente burocratizado, sem qualquer incentivo para se esforçarem mais ou melhor, faziam o mínimo possível. Os cubanos estavam numa situação difícil, sem dinheiro, e acima de tudo queriam voltar para Cuba. Presumo que trabalhavam à margem de qualquer protecção social, mas isso era visto como trivial. Nessa altura, as leis em vigor eram apenas um meio suplementar e pretextual de rapina por parte dos burocratas que as aplicavam conforme o seu interesse próprio, os subornos que recebiam ou não. Como à volta da portuguesa não havia estado, era a máfia que fazia esse papel.

Depois, na conversa, somava pormenor sobre pormenor sobre o seu desespero em conseguir que a cozinha funcionasse bem. O cozinheiro que fazia as compras entendia que era irrelevante comprar produtos de qualidade – para ser mais barato comprava maçãs e batatas de fraca qualidade – e o restaurante pretendia ser um restaurante de luxo e caro e já tinha de competir com outros do mesmo tipo. Batatas de má qualidade não eram poupança eram desperdício, mas o cozinheiro não compreendia. Depois havia todo um conjunto de velhos hábitos soviéticos muito difíceis de mudar – por exemplo o cozinheiro teimava em fazer café de novo somente quando acabava o anterior, o que significava que havia cerca de quinze minutos em que ninguém tinha café para servir no restaurante.

Os seus problemas não se limitavam ao restaurante. No mesmo edifício havia também um “hotel”, também uma antiga residência onde os académicos da província podiam ficar quando vinham a Moscovo. Não se sabia quem geria o hotel, embora eu suspeitasse que alguns dos académicos, que tinham deixado de receber salários e perdido os privilégios tinham naturalmente “privatizado” o edifício. Ora a nossa portuguesa tinha conseguido uns milhares de garrafas em miniatura de bebidas para colocar nos quartos (não havia frigoríficos claro, mas havia uns armários), só que não conseguia, um ano depois de as ter conseguido, um acordo sobre percentagens de lucro.

Ao lado, numas lojas que havia, não conseguia que as empregadas percebessem que as vitrinas se destinavam a mostrar os produtos para fora, para a rua, e não para servirem para serem pintadas com desenhos de pombas e cosmonautas, tornando tudo mais escuro. Assim mostrava-se para a rua apenas a parte de trás de armários e estantes de exposição, virados para dentro. A ideia que uma loja comercial existia para servir os seus clientes era alheia à cultura local – uma loja destinava-se a ser um espaço confortável para as suas empregadas e permitir-lhes com facilidade controlar a mercadoria, posta bem longe do cliente entre um balcão a parede. Tudo eram facilidades para o pessoal, tudo eram dificuldades para o cliente. E por aí adiante.

Não sei onde estará hoje a minha vianense moscovita, espero que bem, mas estou-lhe muito grato pela sua lição, naquela noite que durava desde as quatro da tarde, no mais improvável dos lugares.
 


POUCA HISTÓRIA 2

1. Comentando uma observação que fiz no dia 22 de Maio sobre as razões porque há tão pouca meditação sobre história nos blogs , a Aurora do Da Província avança com uma opinião :

A natural estratificação da população que acede à internet ( mais jovem, com elites menos cultas ); a História ser um tema "frio", no sentido de se poder fazer menos aquilo que os portugueses tanto gostam: ser treinador de bancada; o "agora e já" ser um fenómeno de "adição" do nosso tempo ( o tempo em que já não há Tempo) que não permite tertúlias pouco mais que superficiais na Internet ( do género troca de cromos...); a esmagadora maioria dos portugueses (…) não ter a (…) informação (…) para - de forma construtiva - pronunciar-se sobre temas de História; o Passado ser inamovível, no sentido de já não podermos intervir - o que contraria o umbiguismo nacional.”

As observações da Aurora tem um ponto que me interessa para o debate : o facto da história não ser “interactiva” torna-a desapropriada para um meio e para a cultura dos seus habitantes , essencialmente motivados pelas vantagens de este ter um carácter opinativo e imediatista sobre os eventos do presente .

Há outra razão e essa tem a ver com o diminuto papel que a história , enquanto percepção do tempo e da cronologia , tem no actual sistema de ensino . A influência do estruturalismo em disciplinas como a literatura , a filosofia e mesmo a história , desvalorizou a componente cronológica do saber . Há um artigo recente de Luc Ferry sobre os efeitos devastadores do estruturalismo nos conteúdos dos programas escolares franceses. Logo que tenha a ligação , caso esteja em linha , incluo-a nesta nota .

2. A Susana , o Heitor e o Diogo da Psicossomática responderam assim à pergunta :

«Porque razão entre os temas dos blogs e das mensagens neles afixadas há tão pouca presença da história?»

Porque João Benard da Costa escreve apenas uma vez por semana no Público, ou seja, porque para o ler é preciso parar, prescindir da pressa, virar para fora, para o que de dentro dele sai por palavras perfeitas. O que queremos dizer com este exemplo precioso é que não basta contar com a presença da história, é fundamental saber como contá-la. Pensamos que raros são os que tendo o gosto pela história não caem no poço seco dos factos sobre factos, datas e links sem acrescentar a forma literária à «coisa» contada provavelmente por uma questão de tempo ou falta deste. É fundamental, cada vez mais, escrever muito bem sendo que escrever muito bem é muito mais do que estar de acordo com a gramática. Estamos a falar de literatura, sim! Não recear as voltas que a língua dá e dar mais do que aquilo que todos os manuais de história têm dado aos estudantes. Por exemplo e que raio de exemplo tão adequado. É que não há manual de história que não seja um repositório de textos sem chama, tristes e bisonhos como triste e bisonho é o ensino da história transformado em axioma sem vida. Que, de facto, a morte é o que temos de certo e o passado está cheio de mortos que a maioria dos historiadores não desenterra, não mexe nem deixa mexer ou toca ao de leve. Levemente.

É preciso, diríamos, não recear o erotismo, a sensualidade que encontramos nos textos de Benard da Costa ou Agustina. Seria preciso conquistar os historiadores para a literatura e a disponibilidade que esta exige. Que a literatura começa onde a cabeça tem corpo e o mostra, roça, passa pelos factos e os agarra com as mãos. Não há nada de animal que os animais deixem passar ao lado. A história não deveria ter escapado aos sentidos. Contudo, lá foi escapando. Trata-se, portanto, de uma questão de vida e morte. A «pouca presença da história» não será só a ausência disto, das ding, dessa «coisa» estranha que não se entranha porque só se procura por aquilo que se sabe e reconhece. Sem a pressa com que hoje todos falamos de tudo. Sem medo do ar do tempo que sopra a correr por todo o lado. E todo o lado é de mais. Não?"
 


OBJECTOS EM EXTINÇÃO 7

1) A Aurora do Da Província ,lembra o

Ovo amarelo ( aquele autocolante com um 90 inscrito, que se colocava na traseira dos carros), a fisga, a combinação ( aquele vestido fininho de alças para colcocar debaixo da roupa de senhora). "

e acrescenta , muito apropriadamente , a "vergonha na cara ", mas não é um objecto.”

2) Maria P. inclui o radiomadorismo

ontem, estava a ver um filme na televisão sobre um radio-amador e comecei a pensar se isto das comunicações na net não tem muito de radio-amadorismo, sem, no entanto, a magia da voz. Só espero é que a net não venha tornar obsoleta essa outra forma de comunicar à distância por ondas hertzianas, que eu nunca experimentei mas que sempre me fascinou. “

3) Pedro F. lembrou a existência de um Catalogue of Obsolete Entertainments referido numa nota do Salon

4) O Critico Musical inclui o soneto “por provocação” , e , talvez para provar que já não se fazem destas coisas , no blog transcreve Petrarca

Mando-lhe por graça um objecto imaginário, do campo das artes, um objecto que ainda não existe porque é uma abstracção de algo que ainda não foi criado, uma obra que vai desaparecendo, porque ninguém (ou quase) a pratica: o soneto. Claro que não me refiro à leitura do soneto, Shakespeare deixou-nos esse objecto, aliás vivo, mais vivo que os garfos que vi no museu da idade média, no Boulevard de Saint Germain.”


5) Roberto Trindade lembra o “ tipo de chumbo e antimónio, usado pelos tipógrafos, que serviu durante séculos para se (re)produzirem grandes obras literárias.”

 


LER DUAS VEZES 2

Ler duas vezes o Mau Tempo no Canal de Nemésio por Rita Maltez

Por um lado, as sensações que temos ao relermos um livro podem ser diferentes consoante o nosso próprio estado de espirito do momento ou em função de alterações mais estruturais na nossa forma de pensar, ver, elaborar, problematizar e até sentir . E até em função da nossa própria abertura a novas sensações.
Reli há pouco tempo o Mau Tempo no Canal. Talvez 20 anos depois de o ter lido a primeira vez. E desta vez, mais do que a história, e sem prejuizo dela, dei comigo a admirar a forma como é contada, o modo como são magistralmente usadas as palavras. E ia pensando: "Bem .. a história, é vulgar, a pobre rapariga enclausurada na ilha, com sonhos e aspirações, corajosa, voluntariosa, etc , etc.... . A forma de a contar é que é diferente. Isso é que marca a diferença deste livro."
Quando, na minha primeira leitura, o que me agradou foi exactamente o enredo. E confesso que nem lembro de ter reparado na forma. Talvez nem soubesse reparar nela. Fui eu que mudei. (e reeditei, sem querer, o velho problema de saber se o que conta na arte é a forma ou ou conteúdo)”


Ler duas vezes Clareiras no Bosque da Zambrano , Rui Magalhães Paixões e Singularidades , Herberto Helder e Ruy Belo por Maria P.


"Clareiras no bosque" da Zambrano (musa das minhas parcas escritas, o livro não a autora, claro!!) e o apaixonado ensaio do Rui Magalhães "Paixões e Singularidades" (Angelus Novus). Depois a poesia toda do HH e do Ruy Belo, a que volto e revolto e não esgoto. O acto de reler nasce daqueles livros que nos provocam a "entrar pela janela"; que nos deixam a sensação de haver vários graus de leitura a explorar; nesses livros, a primeira leitura é muitas vezes um retirar a tampa, sem, ainda, colocar a mão no doce (ou no amargo). é fabulosa essa sensação de se estar a ler a mesma coisa e parecer que ela é sempre nova, que se renova aos nossos olhos.

© José Pacheco Pereira
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