ABRUPTO

4.12.14


A BARREIRA


 “– E, se calhar, temos de ponderar sanções jurídicas para os casos em que os poderes que são distribuídos, incluindo ao Tribunal Constitucional, são extravasados.


 – Que sanções podiam ser aplicadas ao Tribunal Constitucional? 



 – Sanções jurídicas.”



Este fabuloso diálogo é travado numa entrevista ao PÚBLICO por Teresa Leal Coelho, uma das mais próximas deputadas da actual direcção política do PSD de Passos Coelho, que, ao que se saiba, é jurista. Num mundo ideal, como é o da série americana Newsroom, devia seguir-se toda uma outra série de questões ao modelo daquelas que uma jornalista do canal fictício de televisão entendia fazer a Michelle Bachman, congressista americana republicana ligada ao Tea Party, e que dizia que Deus a tinha aconselhado a concorrer a um cargo político: “Como é que soa a voz de Deus?” Neste caso, que “sanções jurídicas” pode ter um tribunal superior pelas suas decisões? Quem as decide? Quem as aplica? Um outro tribunal superior ao superior? O Governo? A ministra da Justiça? O Parlamento? A deputada Teresa Leal Coelho? Deus? Há certamente um problema com os cursos de Direito de algumas faculdades. 

 Este exemplo e esta citação abrem um outro conjunto de citações tão absurdas e ridículas como perigosas, no início do livro de Jorge Reis Novais, Em Defesa do Tribunal Constitucional. Respostas aos Críticos, editado pela Almedina e que tive o gosto, junto com Marcelo Rebelo de Sousa, de apresentar. É um livro de um professor de Direito, legível por todos, cheio de humor e boa irritação, no bom sentido weberiano da empatia que percorre a melhor ciência. 

 Reis Novais não pretendeu escrever um livro político, mas um estudo jurídico que tem naturalmente implicações políticas. Não me pronunciarei sobre a parte jurídica, para que não tenho competência, mas discutirei por que razão este livro é muito importante para perceber os tempos em que vivemos. O livro ficará entre os poucos que permitem elucidar estes anos de crise, sem ser apenas pela perspectiva da economia que é o tema dominante da literatura e ensaística neste período. 

 Vale a pena lê-lo e pensar sobre o que lá está dito, porque o ataque ao Tribunal Constitucional será uma ou das poucas marcas permanentes que sobreviverão aos actuais governantes, em que o desgaste das instituições é muito fácil de fazer em anos de perda colectiva, em que a procura de bodes expiatórios encontra sempre os seus corifeus e legitimadores. Entre eles, Teresa Leal Coelho e Passos Coelho estão na parte de baixo da cadeia alimentar, que neste caso se estende para cima, para aqueles que na Comissão Europeia e no FMI (e os seus repetidores portugueses) entendem que o Tribunal Constitucional alemão é intocável e o português uma atrapalhação desfasada da “realidade”, caduca e cediça, uma qualquer “brigada” do passado, como os mais malcriados membros do Governo costumam designar quem se lhes opõe.

 No topo dessa cadeia, estão alguns juristas e professores de Direito que apareceram com toda uma teorização legitimadora e, no fundo, meramente utilitária, da crítica ao Tribunal Constitucional, desenvolvida quase sempre depois das decisões desse tribunal que travaram algumas medidas governamentais e não antes. Como Marcelo Rebelo de Sousa notou na apresentação do livro, alguns dos mais nacionalistas e críticos da União Europeia, passaram a ser abnegados defensores da supremacia do Direito europeu sobre a Constituição Portuguesa. No fundo, como em muitas coisas em Portugal, nestes tempos de bizarra “luta de classes”, ou se está com “eles” ou contra “eles”.

 O objectivo do livro de Jorge Reis Novais não é analisar o conteúdo e valor jurídico das decisões do Tribunal Constitucional, com que o autor muitas vezes discorda, mas o papel, a importância e a necessidade do próprio tribunal, e por essa via perceber o valor da Constituição em tempos de crise. Dois capítulos são particularmente interessantes: aqueles em que o autor discute o “estado de emergência financeira como pretenso estado de excepção constitucional” e outro sobre a justiça constitucional e a integração europeia, tratando dos argumentos que consideram que a nossa Constituição está ultrapassada ou submetida ao Direito europeu. Quase todo argumentário de ataque ao Tribunal Constitucional cabe nestes dois capítulos.

 O ataque ao Tribunal Constitucional não estava no programa da actual maioria, embora estivesse uma profunda alteração da Constituição. Uma coisa levaria à outra, mas não foi imediata, até porque o PSD estava convencido de que os juízes que nomeara se prestavam a julgar como militantes partidários e não como juízes. Enganou-se e fez mais tarde a autocrítica amarga que “não os tinha escolhido bem”. Como acontece muitas vezes com o tipo de políticos do género de Passos Coelho, o percurso e a importância de uma revisão constitucional, que exigia a colaboração do PS, variou. O projecto de Paulo Teixeira Pinto era tão radical, e tão hostil ao património social-democrata, que foi rapidamente abandonado, com Passos Coelho num congresso do PSD a negá-lo com afirmações de fé social-democrata. Como sempre, o dia de hoje faz esquecer o dia de ontem.

 Como é costume, a coisa não iria durar muito, e passou-se da questão da Constituição para a questão do Tribunal Constitucional. Não é a mesma coisa e não tem os mesmos riscos para a democracia, porque as opiniões sobre a Constituição são livres no sistema político, mas o ataque à autoridade de um tribunal e o permanente jogo no limite de apresentar as mesmas medidas disfarçadas de outras ou de apresentar medidas que já se sabia serem inconstitucionais para atirar para o tribunal o ónus das dificuldades da governação, é um jogo muito perigoso. O segundo pilar da democracia, o primado do direito, foi claramente posto em causa por um Governo que hipervalorizava o primeiro, a soberania popular pelo voto.

 Na verdade, a afirmação reiterada de que o Governo, mesmo que não concordasse com as decisões do tribunal, as cumpria, não basta para se poder afirmar que houvesse um pleno primado do direito, porque os múltiplos efeitos perversos das várias atitudes do Governo e também do Presidente, objectivamente deslegitimavam o tribunal e o valor da Constituição. O Presidente permaneceu silencioso perante atitudes inaceitáveis de pressão e mesmo insulto sobre o tribunal, um caso de funcionamento irregular das instituições e, como nota Reis Novais, não enviou para o tribunal um Orçamento que sabia ser inconstitucional e enviou outro que entendia ser constitucional, porque o Governo lhe pediu. O Governo, numa atitude bem pouco patriótica, usou o Tribunal Constitucional perante a troika, para explicar alguns dos seus falhanços, e aceitou, com satisfação, ver esses argumentos repetidos em relatórios da Comissão ou do FMI.

 O conflito crescente do Governo e da maioria com o Tribunal Constitucional tem a ver com o modelo de “ajustamento” seguido (insisto, um entre vários possíveis), assente num alvo, a classe média, e no saque fiscal aos rendimentos de trabalho, nos cortes a salários e pensões, violando contratos de um determinado tipo e desequilibrando relações de equidade e confiança. O choque era inevitável.

 Mas o que os críticos do Tribunal Constitucional nunca lembram é que podiam ter sido outros os alvos do “ajustamento”. Um outro Governo poderia ter seguido outro modelo, podia inclusive obter os recursos de que precisava com confiscos de bens, nacionalizações, a violação de outro tipo de contratos, os “blindados”, ou seja, atacando a propriedade. Aí, também o Tribunal Constitucional, e bem, travaria um Governo que prosseguisse nessa via porque violaria a Constituição portuguesa. Nessa altura, seria, para os actuais críticos, um herói, uma última barreira contra a barbárie expropriadora e, quiçá, o comunismo. Não se ouviriam críticas, mas elogios.

 É esta barreira que Jorge Reis Novais quer defender no seu livro e fá-lo com muita eficácia. Vale a pena ler.

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]