ABRUPTO

28.8.14



NA MORTE DE EMÍDIO RANGEL


NA TSF 

Sempre que Emídio Rangel se apanhava no lugar certo e no momento certo – e quer na TSF, quer na SIC esse lugar e momento certo foi o fim do monopólio de estado sobre os media audiovisuais – ele mostrou as suas excepcionais qualidades de inovador, arrastando atrás de si equipas a quem ele deu uma forte identidade, agressividade e competitividade. Na TSF, fê-lo num momento de transição que transformou uma rádio quase pirata na referência noticiosa, no meio de uma enorme turbulência, afrontando o poder político que estava pouco habituado a ser tratado sem o “respeito” institucional que vinha da antiga Emissora Nacional e apenas se “avermelhara” no PREC. A retaliação era feita de muitas formas inclusive pelo controlo do sinal da emissão, que ultrapassava muitas vezes o permitido, mas umas vezes fazia-se de conta e outras lá apareciam os inspectores atrás dos “cristais”. Recordo-me de muitas vezes Rangel dizer quando havia uma matéria mais quente, “lá vêm os homens ver os cristais”. 

Hoje, esta TSF já não existe em grande parte. Está cheia de programas, patrocínios e anúncios institucionais e em muitas matérias segue uma linha editorial muito próxima do governo e da ideologia do “ajustamento” do que qualquer canal noticioso televisivo, seja a SICN, seja a TVI24. A crise, as atribulações da sua propriedade, o afastamento de jornalistas seniores, pesaram muito na sua perda de vitalidade e inovação. Os noticiários tornaram-se pouco acutilantes em matérias nacionais e as debilidades de redacção são evidentes. É verdade que Rangel que a fez, também ajudou a desfazê-la, numa fase mais complicada do seu percurso profissional, mas nem por isso os seus méritos de conjunto são menores. 

NA SIC 

Na televisão, Rangel mostrou a mesma capacidade “revolucionária”. Sem Emídio Rangel a criação de uma televisão privada em Portugal diferente da RTP, com a renovação que trouxe aos conteúdos e às formas, com as suas qualidades e os seus defeitos, demoraria muitos anos a dar-se, se se desse. Na SIC, Rangel mudou quase tudo, os programas de informação, os de entretenimento, os noticiários. Também na SIC, como na TSF, mostrou a sua capacidade de criar equipas que lhe eram pessoalmente dedicadas e a quem ele dava a “camisola” de uma causa. Foi buscar à RTP não só aqueles que eram mais conhecidos, mas muitos que eram fundamentalmente talentosos e a quem a agilidade e a liberdade da SIC deram a possibilidade de mostrar o que valiam. Ao mesmo tempo que começava a “fazer” a SIC, Rangel estudava tudo o que podia e encontrava sobre televisão, não se limitava a inventar do nada. Ouvia tudo e todos e se encontrasse boas ideias, permitia a sua realização, promovendo os melhores, mesmo que sem nome já firmado.

Mas, com o tempo, a televisão que fazia era cada vez mais cara e começava a não resistir à competição com outro homem que “fez” a televisão em Portugal, José Eduardo Moniz. O Big Brother foi a causa próxima, mas já havia na televisão privada um curso subterrâneo dos acontecimentos que iria precipitar a queda da SIC do lugar cimeiro e as tensões que levariam ao afastamento de Rangel. Rangel tinha mau feitio e, nas relações pessoais, ou as coisas corriam bem ou, quando corriam mal, corriam muito mal. E Rangel deixou a SIC para uma experiência infeliz na RTP, com a SIC a maltratá-lo a ele e ele a maltratar a SIC. 

Quando deixou a RTP, Rangel um dos homens que mais sabia de rádio e televisão em Portugal, ficou efectivamente desempregado, e com uma colecção de inimizades considerável que o impediam de ter alguma esperança de regressar ao escasso panorama de estações televisivas. Ele sabia-o bem. Lançou-se nalguns projectos que não tiveram andamento nem sucesso e coleccionou algumas amarguras no fim da vida. Mas as coisas são como são, e nada disso retira o enorme papel que teve na comunicação social pós-25 de Abril. 

 O QUE DEVO A EMÍDIO RANGEL 

Devo muito a Emídio Rangel, um homem com que sempre tive muito boas relações e apreço mútuo. Nunca aceitei o “esquecimento” a que foi votado na SIC, – por exemplo, o seu retrato não se encontrava nas paredes da estação, - e sempre que tive oportunidade referi o seu papel na própria SIC, quer no meu programa Ponto Contraponto, quer quando do aniversário do Flashback, agora com o nome de Quadratura do Círculo. De todas as vezes que isto acontecia, Rangel falava-me ou escrevia-me “agradecendo”, coisa que sempre lhe disse não ter qualquer sentido, a não ser pelo facto de haver silêncio a mais à sua volta.

Tive o privilégio de fazer parte de dois dos seus programas mais inovadores, o Flashback na TSF e o Terça à Noite na SIC. Rangel fez parte do painel inicial do Flashback, e recordo-me de ele muitas vezes dizer, quando havia críticas de que “estávamos a falar ao mesmo tempo” (eu, o José Magalhães, o Vasco Pulido Valente, o Nogueira de Brito e depois o Miguel Sousa Tavares, na fase inicial), “que nunca vira ninguém mudar de canal nesses momentos”. Ele queria debates a sério, mesmo que muitas vezes caóticos, mas cuja empatia, fosse simpatia ou antipatia, prendia quem os ouvia. Numa altura em que os debates políticos contavam com a participação pomposa e ortodoxa de delegados partidários, o Flashback fazia toda a diferença.

Há, por último, um aspecto mais invisível da acção de Rangel, aqui junto com Balsemão, e os actuais responsáveis da SICN, de resistência às pressões quotidianas, repito quotidianas, do poder político, para domar o tipo de informação e debates que ele, Rangel, introduziu na comunicação social portuguesa. Este é um aspecto menos conhecido, mas central na nossa liberdade. E foi o que Rangel ajudou a fazer: a nossa liberdade.

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© José Pacheco Pereira
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