ABRUPTO

22.5.14


   
 SAIBA-SE O QUE SE SOUBER, FICA TUDO NA MESMA


Havia uma fase no governo Sócrates em que tudo o que aparecia a público sobre o Primeiro-ministro, fosse qual fosse a sua gravidade, era respondido com um gigantesco silêncio e não havia follow-up jornalístico. Nunca percebi como tal era possível, visto que, por todos os critérios jornalísticos, as matérias que vinham a público, que podiam ser notícias, documentos, entrevistas de pessoas com conhecimento directo de factos e eventos, exigiam mais esclarecimento. Mas havia era silêncio, como se existissem duas agendas uma a oficial, outra a clandestina.

Foi o que aconteceu com as peripécias sobre a carreira académica de Sócrates, cujo cabal esclarecimento ficou sempre por fazer. Foi também o que aconteceu com a história da tentativa de controlo da comunicação social à volta da TVI, vinda directamente da sede do poder socialista, documentada e que desaguou nas célebres escutas que parecem indestrutíveis, embora houvesse ordem judicial superior para as destruir. A iniciativa de processar Sócrates por parte dos magistrados de Aveiro por abuso de poder, empancou também nas decisões do Supremo e o inquérito parlamentar foi travado nas suas conclusões pela tríade Branquinho – Relvas – Passos Coelho. A protecção que Relvas e Passos Coelho sempre deram a Sócrates nessas complicações é um facto que muitos hoje desejam esconder, mas foi real e efectiva. A história dá muitas voltas, mas compreende-se que assim tenha sido, até porque Relvas tinha também um estranho percurso escolar e havia a Tecnoforma. Eles sabiam que havia, nós não.

Os factos podiam vir a revelar-se falsos ou mal interpretados, – o que não se passou na maioria dos casos, - os testemunhos suspeitos ou enviesados – e serem mesmo assim relevantes do ponto de vista noticioso e a exigir seguimento e esclarecimentos. Mas o silêncio era a regra. Até um dia. Depois desse dia tudo o que tinha aparecido antes tornou-se verdade absoluta, indiscutível e uma avalanche de vozes soltaram-se. Na maioria dos casos, as que antes estavam silenciosas agora estavam na vanguarda do “mata e esfola”. Escrevi na altura que era uma coisa muito portuguesa: quando se cheira a morte do animal, neste caso do “animal feroz”, ou a pessoa começa a estar na mó de baixo, então vão lá todos bater um pouco.

O SILÊNCIO REPETE-SE


Uma coisa semelhante acontece nos nossos dias. Duas entrevistas publicadas aqui na Sábado, revelaram testemunhos em primeira mão com afirmações de gravidade sobre a actuação de membros do actual governo, particularmente Relvas e Passos Coelho, e de Vasco Rato, uma das nomeações mais absurdas e partidarizadas feita sem currículo e apenas por confiança política. Trata-se de revelações sobre matérias de indiscutível gravidade: serviços de informações, negócios privados usando o acesso ao poder político, “facilitação”, e dados sobre o funcionamento interno do círculo político mais próximo do actual poder, à volta de Relvas e Passos Coelho.

 A entrevista do antigo dirigente do SIED Silva Carvalho contém referências a factos, alguns dos quais em completa contradição com afirmações de governantes, inclusive feitas na Assembleia da República (*). Confirma o convite que lhe foi feito para dirigir o SIRP, e o papel de Relvas, Passos Coelho e Vasco Rato em vários contactos a respeito dos serviços. A permanente presença das relações maçónicas na Loja Mozart, e da Ongoing está em toda a descrição dos eventos assim como os mesmos nomes recorrentes, Vasco Rato, Miguel Relvas e Passos Coelho. A mera lista, já conhecida da Loja Mozart, e a contínua transumância entre a Ongoing, o círculo próximo de Passos Coelho, e todas estas peripécias não é novidade, mas deita fumo como uma fogueira de pneus.

Por seu lado, Fernando Madeira, o ex-sócio maioritário da Tecnoforma, faz um retrato exemplar do modo como certas actividades empresariais, por isso lucrativas, dependem estritamente do acesso ao poder político e de como é nessas empresas que fazem a sua carreira de “gestão” muitos dos actuais governantes que não tem outro currículo. O que eles trazem para o negócio não é qualquer experiência empresarial ou de gestão, mas sim a sua agenda telefónica, e as relações de pertença e proximidade, troca de favores com o poder político. São “facilitadores” e há muitos anos Ilídio Pinho disse numa entrevista sobre o mestre deles todos que valia um “milhão de contos”. Como diz Fernando Madeira, “desbloqueiam”: “o Pedro abria as portas todas”. Pode haver ajustes de contas nestas entrevistas, mas os factos nelas revelados permanecem por desmentir. Ambos são testemunhas privilegiadas das matérias sobre as quais falam e, quer num quer noutro caso, os seus depoimentos são consistentes com o que já era conhecido. Mas, para além disso acrescentam detalhes e é nos detalhes que se percebe muita coisa. São um retrato dos círculos negros do actual poder político-partidário em Portugal.

 Não sei se algum dos factos que referi têm incidência criminal e espero que as investigações em curso cheguem a bom termo. Talvez não tenham, embora a história da Tecnoforma é idêntica à de muitas outras empresas criadas em círculos do PSD e PS para usar o acesso ao poder político nacional e local para fazer negócios, e sei também que muita gente enriqueceu nesse processo. Sem esse acesso ao poder político essas empresas não valiam nada, até porque não eram verdadeiramente empresas. No caso dos serviços de informações, a perigosidade da sua politização, para além da que já existiu e da que ainda existe, é um risco para a democracia. As eminências pardas do PSD, as maiores e mais sabidas e os aprendizes de feiticeiro, são nomes que aparecem sempre, tocam e voam para longe quando as coisas começam a apertar.

Repito: não sei se existiram crimes ou não. Mas sei que existiram comportamentos inaceitáveis do ponto de vista político e ético. Nos países de mínima civilização, seriam um escândalo público. Aqui puff… Mas alguém quer saber disso? O silêncio e o encolher de ombros do “fazem todos o mesmo”, explica por que razão podem haver as maiores “revelações”, que fica tudo na mesma.

(*) Posteriormente a este artigo ter sido escrito, e muito tempo depois da entrevista citada, o gabinete do Primeiro-ministro veio negar ter havido um convite formal.

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]