ABRUPTO

29.3.14


OS LIVROS QUE NOS CHAMAM






Nas livrarias descubro, embora infelizmente cada vez menos nas livrarias portuguesas, quase todas iguais, cheias de papel pintado com o mesmo grafismo, o mesmo estilo de capas e com os livros razoáveis e bons afogados por centenas de títulos que não duram uma semana de exposição, e que são, por regra, pouco mais que modas. Por outro lado, a proximidade com a edição portuguesa, o conhecimento do que vai sair, retira muito o factor surpresa e por isso, os livros de que vou falar são em inglês e na sua maioria comprados em livrarias estrangeiras.


Para um frequentador compulsivo de livrarias essa voz dos livros não é estranha, mas nunca me tinha perguntado sobre as suas razões e, em cada caso, há razões. Como quase tudo o que é interessante na vida é movido a curiosidade, o grande motor intelectual de sempre. Surpreende-me aliás o pouco que se escreve sobre a curiosidade, dado o papel que ela tem no modo como nos movemos pela cabeça e pelo corpo. Pode-se assistir a dezenas de colóquios e debates sobre o conhecimento, a inovação, a aprendizagem, a escola, as empresas, a arte, a literatura, e embora haja referências à curiosidade, de um modo geral está subvalorizada. Posso-me enganar, mas sem curiosidade é-se pouco mais do que um idiota especializado, com ênfase no idiota.


Como é que funciona, como é que funciona em mim? Funciona pela consciência da ignorância, da vontade de saber mais, mas funciona também pelos fragmentos do que já se sabe e nos “puxam”, ou funciona por uma certo jogo lúdico com uma frase, ou uma imagem ou uma ideia. Muitas vezes é puramente irracional, manifestação dos mecanismos obscuros do gosto, outras resultado da inteligência do marketing. Sim, também. A carne é fraca.


Que livros comprei que não contava comprar? Começo por dizer que nenhum dos livros de que vou falar foram lidos, mais do que o rosto e o verso, e mais uma ou duas páginas folheadas na livraria. Folheados mais do que lidos, sendo que folhear continua a ser uma actividade que só se pode ter com os livros de papel. Com os livros electrónicos pode haver procura, mas o acto de folhear é muito mais eficaz no papel, mais conforme com os nossos sentidos e com o modo associativo como pensamos, a “fuzzy logic” da cabeça das pessoas.


Suspeito que a probabilidade de muitos destes livros inesperados  acabarem por não ser lidos seja grande. Às vezes o interesse que me motivou a comprá-los entretanto passou, quando vou finalmente tentar lê-los. Resta-lhes ficar no gigantesco limbo dos livros por ler, embora tenha sempre relutância em guardá-los definitivamente. A marca da sua entrada não prevista para a minha biblioteca, deixa-os sempre no ar, como “interessantes”. A curiosidade é muito inconstante, muito vagabunda, e o seu “mercado” muito competitivo. Estão sempre a aparecer novos motivos e a deixar outros para trás. Muda com o tempo e com outras leituras, filmes, imagens e interesses. É muito coisa de autodidacta, espécie com má fama entre os tecnocratas, mas de que aprecio o lado amador. Os autodidactas nem sempre são frequentáveis e há alguns particularmente insuportáveis, aqueles que pensam que podem competir com os profissionais da matéria, ou seja, os que se esquecem que são amadores. Mas os amadores são gente curiosa e dedicada à sua curiosidade.

Vejam-se alguns exemplos recentes, destes livros inesperados. Comprei The Disappearing Spoon: And Other True Tales of Madness, Love, and the History of the World from the Periodic Table of the Elements de Sam Kean, numa livraria de Lisboa, daquelas que estão a fechar no Largo da Misericórdia, provavelmente em segunda mão. Sei porque é que o comprei e a culpa é do Professor Poliakoff e dos seus vídeos da Periodic Table of Videos feitos pela Universidade de Nottingham. Não sei se o vou ler, mas quando o comprei já conhecia o célebre truque dos químicos com o gálio que dá o título ao livro. Na verdade, o que na série um pouco caótica e, ela sim, amadora no melhor sentido da palavra, me tem interessado mais é poder ver, insisto ver, uma esmagadora maioria de elementos que conheço de nome, mas não fazia ideia de como eram. Gálio, césio, estrôncio, molibdénio, plutónio, irídio, neodímio, etc., etc. E vê-los arder, explodir, comportar-se de maneira bizarra ao ar, venenosos, perigosos, “interessantes” ou inócuos, “nobres”, logo “aborrecidos”. E ver alguns dos químicos que por lá passam olharem com a mesma curiosidade para a maioria de elementos da tabela periódica, que eles mesmo nunca tinham visto. O tenebroso flúor por exemplo. No meu liceu havia um laboratório, uns bicos de Bunsen, umas pipetas, ácido clorídrico, um frasco com sódio e pouco mais. Fiquei sempre com pena de não haver mais. Há nos livros.


Em Nova Iorque comprei, numa habitual Barnes and Noble, um livro de Thomas Healy, intitulado The Great Dissent: How Oliver Wendell Holmes Changed His Mind--and Changed the History of Free Speech in America. Aqui foi a contracapa que me levou a comprar, embora o título ajudasse. A descrição laudatória nas citações não é original. “uma história detectivesca intelectual”, mas nas badanas ia-se mais longe e o autor explicava o seu interesse em perceber por que razão um juiz, tradicionalmente desdenhoso dos direitos individuais, defendeu em 1919 uma posição sobre a liberdade de opinião, o “free speach”,  que iria moldar o pensamento jurídico americano até aos dias de hoje. De Holmes, conhecia-lhe o nome e lembrava-me de um selo com o seu retrato, nada mais. Mas como estas “mudanças de opinião” são interessantes e a liberdade, nestes dias de subjugação, me interessa, e como os americanos são melhores do que quaisquer outros a fazer estas histórias da ousadia intelectual, comprei o livro. Vamos ver se o leio.


No mesmo sítio comprei um livro de ensaios de Sloane Crosley, intitulado I Was Told Ther’d Be Cake , influenciado pela indicação de que era um New York Times Bestseller. Parece que não, mas as listas contam. Comprei também um Prémio Pullitzer, o livro de Stephen Greenblatt, The Swerve How the World Became Modern, mas parece-me ser outro campeonato. A jovem autora, muito parecida com a nossa ministra Cristas, escreve naqueles sítios onde de um modo geral se escreve bem, Salon, Village Voice, Playboy, mas sem ser mais do que isso. Li umas linhas do primeiro texto, mas duvido que vá muito mais longe. Parece-me, com o arrojo de o dizer apenas com umas linhas lidas, um tipo de escrita ligeira que tem hoje muito sucesso, trivial e engraçada, que uma multidão de discípulos de Miguel Esteves Cardoso pratica, mas que não devo ter tempo para ler. Vamos ver.


Por fim, mais um exemplo, que ainda cabe no artigo, o livro de Douglas Egerton, The Wars of Reconstruction. The Brief, Violent History of America's Most Progressive Era. Foi aquele em que fui mais longe, tendo lido praticamente um capítulo e, neste caso, tendo quase a certeza que vou continuar. Por razões de ofício e curiosidade compro muitos livros de história, mas mudo de interesse nas épocas conforme outras solicitações, outras leituras e muito do que se pode hoje ver na televisão e no iPad. As séries, por exemplo, uma revolução na televisão. Ou as aulas das universidades americanas que vejo no iPad. Neste caso, foi uma série de aulas de David Blight, dadas em Yale, sobre a guerra civil americana e o período conhecido como “reconstruction”, um dos momentos mais violentos da história americana de sempre, quando nasceu o Ku Klux Klan e onde os negros recém-libertados governaram muitas cidades e aldeias do Sul, até serem corridos com assassinatos colectivos em série.


Enquanto houver livros para ler, sei que não terei um único momento aborrecido na vida. Só isto basta para lhes dever muito.

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© José Pacheco Pereira
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