ABRUPTO

23.11.13


 INTERVENÇÃO NA AULA MAGNA (21 DE NOVEMBRO DE 2013)

- Texto escrito e lido com pequenas diferenças devidas à oralidade da intervenção -  


Como é que vos (nos) devo (devemos) tratar? 

Queria evitar o frémito que Mário Soares provocou na última destas reuniões ao me chamar “camarada”, coisa que gerou alguma excitação nas hostes. Devo por isso dirigir-me ao nosso anfitrião como “companheiro”, a fórmula de conveniência, que se usa, ou melhor, usava no PSD? Ou, na tradição republicana, “correlegionário”? Ou devo lembrar que “camarada” é, entre outras coisas, uma fórmula de tratamento que os nossos militares aqui presentes reconheceriam nos seus “camaradas de armas”? Ou, se ainda houvesse tipógrafos, lembrar que esta era uma forma de tratamento comum entre profissionais de vários ofícios, para além dos ideais políticos de cada um? Ou, para fugir à carga das palavras, sinal também ela da crise que atravessamos, usar uma fórmula de tratamento esquecida, usada pelos velhos operários esperantistas, “samideano”, no seu significado de "com as mesmas ideias", ou numa tradução de um dicionário esperantista,  “co-idealista”? Não devo, porque há muitos materialistas na sala e não há palavra, nem em esperanto, para co-materialista. 

Vou usar outra fórmula, aquela que o Manuel Alegre conhece bem, que vinha da Rue Auger, Alger, Algerie e que iniciava as emissões da Rádio Voz da Liberdade, com um tonitruante “Amigos, companheiros e camaradas”. 

Amigos, companheiros e camaradas,

Como membro de uma minoria em extinção, pelo menos no topo do meu partido, o PSD, a dos social-democratas, não se espere de mim nem uma palavra de justificação por aqui estar. Bem pelo contrário, farei a muitos a pergunta de por que razão não estão aqui de corpo, já que de espírito muitos estarão. Não os represento, não represento ninguém a não ser a mim próprio e mesmo assim de forma bastante imperfeita, mas os tempos não estão para inércias nem para confortos, nem para encontrar pretextos do passado, ou diferenças no futuro, para não se lutar, não pelas mesmas coisas, mas contra as mesmas coisas. Em momentos de profunda crise, tem que ser assim, sempre foi assim, e esse é o sentido mais profundo deste tipo de iniciativas de Mário Soares. O incómodo que geram, no poder e na oposição, vem disso mesmo. 

Nós somos de facto muito diferentes entre nós, somos aquilo que no mundo anglo-saxónico se chamaria “strange bedfellows”, estranhos companheiros de cama. Não se assustem as almas pudibundas, porque a expressão vem de Shakespeare e refere-se ao manto em comum que protege os marinheiros da tempestade, “misery / acquaints a man with strange bedfellows.” 

Na verdade, estranha assembleia esta que junta quem quer rasgar o memorando e colocar delicadamente a troika na rua, quem a quer colocar na rua menos delicadamente, com quem aprovou o chamado Pacto Orçamental, com quem pensa que o memorando, filho da necessidade extrema, podia ser aplicado de modo muito diferente, sem o rastro de incompetências e mistelas ideológicas deixado nestes dois anos. 

É ambígua essa “unidade”? É sem dúvida, mas seria muito mais perigoso não ter qualquer forma de entendimento quando o mal que se está a fazer ao país, a Portugal, a tempestade que nos assola, é tão grave que considerações de conveniência só servem o Deus dos trovões e da chuva que nos quer afundar o navio. Sim, até porque muitos marinheiros já estão na água, como aqueles a quem se chama eufemisticamente “desempregados de longa duração”, ou seja, aqueles portugueses cuja vida está estragada até ao fim dos seus dias. 

E nem sequer estou certo que o que nos une seja o lema deste encontro: “Em defesa da Constituição, da democracia e do estado social". Não me entusiasma como lema, ninguém se mobiliza por uma lei, mas por aquilo para que essa lei serve, ou aquilo que essa lei defende: democracia, confiança, soberania, contrato social. Ninguém se mobiliza pelo “estado social” que é muitas vezes uma abstracção ideológica. Mobiliza-se por que todos possam ter uma vida decente, saúde, educação, segurança, – muita gente esquece-se que existe também um direito à segurança, – e para que ninguém possa ser excluído desses bens básicos porque não tem dinheiro. E se alguns podem, devem apoiar os que não podem, não como caridade ou assistência, mas como forma natural de viver em sociedade. Tão simples como isso. Vem no Programa do PSD escrito por Sá Carneiro, vem na doutrina social da igreja. 

Mas, acima de tudo, custa-me a ideia de que o papel dos que aqui estão seja apenas “defender” como se estivessem condenados a travar uma luta de trincheiras. Não, os que aqui estão não estão a defender coisa nenhuma, mas a atacar a iniquidade, a injustiça, o desprezo, o cinismo dos poderosos para quem a vida decente de milhões de pessoas é irrelevante, não conta, é um “custo” que se deve “poupar”. A transformação da palavra “austeridade” numa injunção moral serve para um Primeiro-ministro, apanhado pelo sucesso dos celtas, sorrir cinicamente para nos dizer que a “lição” da Irlanda é a ainda precisamos de mais austeridade, ainda precisamos de mais desemprego, ainda precisamos de mais pobreza. E sorri muito contente consigo mesmo.

O discurso de contínua mentira e falsidade que nos diz como se fosse uma evidência, que “as empresas ajustaram, as famílias ajustaram, só o estado não o fez”, como se as três entidades fossem a mesma coisa e o verbo “ajustarem” significasse o retorno a um estado natural das coisas de que só o vício de quererem viver melhor afastou os portugueses. Na verdade, pode-se dizer que “as empresas ajustaram”. Sim algumas “ajustaram”, mas a maioria “ajustou” falindo e destruindo o emprego, - que para quem não tem outra “propriedade” é o seu modo de vida. As famílias não “ajustaram”, empobreceram e estão a empobrecer muito, para ter que ouvir como insulto os méritos de perderem a casa ou o carro, ou a educação superior para os seus filhos, e o valor moral de deixar de comer bife e passarem a comer frango.

No entanto, há uma coisa em que estou de acordo, de facto o estado não “ajustou”, continua religiosamente pagar os desmandos dos contratos leoninos das PPPs, a negociar com vantagem para o sistema financeiro, os contratos swap, em vez de receber a lição do sucesso judicial de empresários que recorreram aos tribunais, a baixar uns impostos para algumas empresas ao mesmo tempo que continua a permitir que um contínuo entre um establishment no poder ligado ao sector financeiro capture as decisões políticas, tornando intangíveis os seus interesses na razão directa em que viola todos os contratos com os homens e mulheres comuns, destruindo toda a confiança que numa sociedade democrática é a garantia do contrato social.

 Amigos, companheiros e camaradas,

Nos comícios da oposição antes do 25 de Abril cantava-se muito o hino nacional. No grande comício de Norton de Matos no Porto, em 1949, deve-se ter cantado pelo menos meia dúzia de vezes, nem que seja pelo prazer de gritar o “às armas”, que mais do que um grito “às armas”, - estejam sossegados não é isso que quero dizer, - era um grito pela resistência da nação face aos seus inimigos. Não sei se os organizadores desta sessão previram esse acto, mas deviam ter pensado nisso porque é de Portugal que se trata e o hino não é só para usar no futebol. 

Quem sente Portugal como uma comunidade, dos pescadores do Algarve, da Nazaré, das Caxinas, dos pequenos empresários de Leiria ou de Viseu, dos operários têxteis do Ave, dos professores de todo o país, dos agricultores dos Açores, do Minho ou do Ribatejo, dos comerciantes do Porto e de Lisboa, dos universitários de Aveiro ou de Braga, dos funcionários públicos que permitem o funcionamento de escolas, tribunais, municípios e hospitais, dos trabalhadores da indústria metalomecânica, da cortiça, dos moldes, dos transportes, dos agentes das forças de segurança e militares, dos reformados e pensionistas, percebe a enorme destruição desta crise, que atinge avós, pais e netos, todas as gerações, que atinge quem tem muito pouco e quem ainda tem alguma coisa, mas que não atinge quem tem muita coisa. Esta é que é a nossa comunidade, um Portugal cuja mera enunciação viola a afrontosa redução de tudo e todos à ambígua designação de “empreendedores” de um lado e “piegas” gastadores do outro. Ou que torna inaceitável o obsceno uso da palavra soberania ou do protectorado para desresponsabilizar o governo e os seus apoiantes de políticas que abraçaram com todos os braços, e que agora, quando correm mal, fazem de conta que não é com eles. 

O que nos une aqui é um outro dilema, a ”questão que temos connosco mesmos” do poema de Alexandre O’Neil 

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, 
golpe até ao osso, 
 fome sem entretém, 
perdigueiro marrado e sem narizes, 
sem perdizes,
 rocim engraxado, 
feira cabisbaixa, 
meu remorso, 
meu remorso de todos nós . . . 

É para não termos esse remorso que estamos aqui, não à defesa, mas ao ataque. Ao ataque por todos os meios constitucionais.

Por aquilo a que chamávamos no passado “a nossa pátria amada”. 



(url)

19.11.13


ÍNDICE DO SITUACIONISMO: "ESCAPAM"?


A questão do situacionismo não é de conspiração, é de respiração.
E, nalguns casos, de respiração assistida.

Ouvido na rádio: não sei quantos funcionários públicos "escapam" aos cortes, porque ganham entre 600 (proposta inicial) e 675 (proposta final). "Escapam"? Pois é, é nas palavrinhas que se transmite muito da ideologia do poder. O verbo "escapam" indicia que, ao terem sido isentos dos cortes previstos, ou estão a gerar uma injustiça ou a fugir, a "escapar", a  uma obrigação qualquer (como se "escapassem" aos impostos ou da prisão.)

É assim que se gera a normalidade "equitativa" das "poupanças" onde só há anormalidade punitiva dos cortes.

(url)

18.11.13


APRENDENDO COM UMA RECLAMAÇÃO DOS MILITARES DE BRAGANÇA NO SÉCULO XIX




(url)


NÃO É "DEFENDER" A CONSTITUIÇÃO, É "DEFENDER" O TRIBUNAL CONSTITUTCIONAL


Já que há por aí abundantes “pressões” para que o Tribunal Constitucional não aplique a Constituição, venho aqui “pressioná-lo” para que a aplique.

Não é por razões jurídicas, nem de interpretação constitucional, para que não pretendo ter competência, mas por razões de política e democracia, que é a razão suprema pela qual temos uma Constituição e um Tribunal Constitucional. É pela Constituição escrita e pela não escrita, aquela que consiste no pacto que a identidade nacional e a democracia significam para os portugueses como comunidade. É por razões fundadoras da nossa democracia e de todas as democracias e não conheço mais ponderosas razões que essas, porque são os fundamentos do nosso contrato social e político que estão em causa, muito para além das causas daqueles que se revêem na parte programática da Constituição.

Eu revejo-me em coisas mais fundamentais, mais simples e directas, que também a Constituição protege e de que, por péssimas razões, hoje o Tribunal Constitucional é o último baluarte. O Tribunal Constitucional é hoje esse último baluarte, o que por si só já é um péssimo sinal do estado da democracia, porque todas as outras instituições que deviam personificar o “bom funcionamento” da nossa democracia ou não estão a funcionar, ou estão a funcionar contra. Refiro-me ao Presidente da República, ao Parlamento e ao Governo. E refiro-me de forma mais ampla ao sistema político-partidário que está no poder e em parte na oposição. Quando falha tudo, o Tribunal Constitucional é o último baluarte antes da desobediência civil e do resto. Se me faço entender.

Há várias coisas que num país democrático não se podem admitir. Uma é a teorização de uma “inevitabilidade” que pretende matar a discussão e impor uma unicidade na decisão democrática. Tudo que é importante nunca se pode discutir. A nossa elite política fala com um sinistro à-vontade da perda de soberania, do protectorado, da “transmissão automática” de poderes do Parlamento para Bruxelas, sem que haja qualquer sobressalto nacional, até porque são aspectos de uma agenda escondida que nunca se pretende legitimar democraticamente, mesmo que atinja os fundamentos do que é sermos portugueses. É um problema para Portugal como país e para a União Europeia enquanto criação colectiva em nome da paz na Europa e que está igualmente presa numa agenda escondida, a que deu a Constituição Europeia disfarçada de Tratado de Lisboa, o Pacto Orçamental para “pôr em ordem” os países do Sul, e a que permite a hegemonia alemã e das suas políticas nacionais transformadas em Diktat. Uma parte da perda de democracia e da soberania em Portugal, com a constituição de uma elite colaboracionista, vem do contágio de uma União Europeia cada vez menos democrática.

Em nome de um “estado de emergência financeira” que umas vezes é dramatizado quando convém e outras trivializado quando convém, seja para justificar impostos, cortes de salários e pensões, na versão “estado de sítio”; ou para deitar os foguetes com o 1640 da saída da troika e do “milagre económico”, na versão “já saímos do programa”, considera-se que nada vale, nem leis, nem direitos, nem justiça social.

A teorização da “inevitabilidade” tem relação com a chantagem sobre o que se pode discutir ou não. Que um ministro irresponsável resolva avançar com números dos juros pré-resgate, isso só se deve à completa falta de autoridade do primeiro-ministro, traduzida na impunidade dos membros do Governo. Mas, quando se considera que os portugueses não devem discutir seja o resgate eventual, seja o chamado “programa cautelar”, está-se no limite de uma outra e mais perigosa impunidade: a de que os “donos do país”, a elite do poder, os cognoscenti, mais os seus consiglieri no sentido mafioso do termo, na alta advocacia e consultadoria financeira, o sector bancário e financeiro, o FMI, o BCE, a Comissão Europeia, podem decidir o que quiserem sobre os próximos dez ou 20 anos da vida dos portugueses sem que estes sejam alguma vez consultados. Aliás, é mais do que evidente que a pressão sobre o PS para que valide a política do Governo e da troika, e que assuma compromissos de fundo com um “programa cautelar”, que pelos vistos antes existia, mas agora não existe, destina-se a tirar qualquer valor ao voto dos portugueses. A ideia é que votando-se seja em quem for, a não ser que houvesse uma maioria PCP-BE, a política seria sempre a mesma. Esta transformação das eleições e do voto em actos simbólicos de mudança de clientelas, sem efeito sobre as políticas, é o ideal para os nossos mandantes e para os nossos mandados, e é uma das suas mais perigosas consequências.
 
Eu revejo-me numa democracia que assente num pacto social, justo e redistributivo, que é a essência do conteúdo do programa do PSD e do pensamento genético de Sá Carneiro, que se traduz numa sociedade em que a “confiança” garanta os contratos, seja para o mundo do trabalho, dos pensionistas e reformados, como o é para a defesa da propriedade contra o confisco. O que não aceito é que se considere que a “confiança” valha apenas para os contratos “blindados” das PPP, para os contratos swaps, para proteger os bancos, para dar condições leoninas nas privatizações e taxas disfarçadas para garantir que um governo que prometeu privatizar a RTP faça os portugueses pagar mais para controlar parte da comunicação social. Ora, escrito ou não escrito na Constituição, o espírito de uma Constituição de um país democrático tem de proteger esses princípios, que são mais do que isso, são valores numa democracia.

Fora disso, o que há é uma lei da selva que a equipa de velhos ricos habilidosos, dedicados a proteger a “família” e as suas posses, habituados a mandar em todos os governos, em coligação com meia dúzia de yuppies com retorno assegurado a todos os bancos e consultoras financeiras, e com uma classe política de carreira, deslumbrada e ignorante, todos entendem que nessa selva são grandes predadores e que se vão “safar”. Habituados à lei da força do dinheiro, da cunha, da “protecção” e da impunidade, eles querem atravessar os dire straits da actual situação com o menor custo possível. Um aspecto decisivo desta lei da selva é a desprotecção dos mais fracos, daqueles cuja vida pode ser destruída por despacho, os expendables, aqueles cujos direitos são sempre um abuso, e para quem as garantias não estão “blindadas”. Se o Tribunal Constitucional não nos defende do retorno a esta lei da selva, todos os dias vertida em leis escritas por aqueles que acham que estão acima das leis, então ninguém a não ser a força nos defende do abuso da força. Que se chegue a este dilema é o pior que se pode dizer dos dias de hoje.

Eu sou a favor de uma revisão constitucional profunda. Muito daquilo que a esquerda louva na Constituição, por mim não deveria lá estar. Acho o Preâmbulo absurdo. Sou contra a “universalidade” da “gratuitidade”, mesmo nesse eufemismo do “tendencialmente gratuito”. Tinha preferido que, após o memorando, PS e PSD tivessem mudado a Constituição, permitindo que na Educação e na Saúde quem mais recursos tivesse mais pagasse, até se chegar nalguns casos aos custos reais, mesmo que isso significasse acrescentar novos ónus à função redistributiva dos impostos dos que mais rendimentos têm. Entendo que a ideia de “universalidade” e “gratuitidade” é puramente ideológica, mas socialmente injusta e que algumas alternativas às políticas “inevitáveis” passassem por aí. Por isso, quem isto escreve não o está a fazer em defesa de muito que está na Constituição, ou se pensava que estava, visto que já se viu que a Constituição protege menos do que o que se dizia. Esse equilíbrio, resultado de decisões moderadas do Tribunal Constitucional e que, contrariamente ao que o Governo diz, têm em conta a situação financeira actual, torna ainda mais vital que um núcleo duro de direitos e garantias permaneça intocável.

A principal decisão do Tribunal Constitucional, seja sobre que matéria for das que lhe forem enviadas, sejam as pensões, as reformas, os salários, seja a legislação laboral, seja a “convergência” do público e privado, seja o que for, terá sempre um essencial pressuposto anterior: está o Tribunal Constitucional disposto a permitir o “vale tudo” que lhe é exigido pelo Governo e os seus amigos nacionais e internacionais, ou coloca-lhe um travão em nome da lei e da democracia?

É a mais política das decisões? É. E em muitos momentos da História foi o falhanço do sistema judicial último que permitiu o fim das democracias. O melhor exemplo foi o da Alemanha diante dos nazis e do seu ostensivo desprezo pela lei face à força.

(url)


ESPÍRITO DO TEMPO: HOJE 
Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM) 

(url)

17.11.13


PONTO / CONTRAPONTO: NOVO HORÁRIO DA NOVA SÉRIE
  aos domingos às 20 horas na SICN.

  Se o caos do futebol não lhe alterar mais uma vez o horário.

HOJE:o que é muito dinheiro e Pasolini.

(url)


A BANALIZAÇÃO DA SOBERANIA PELOS PATRIOTAS DE BOCA


Portas faz parte de uma direita que já foi nacionalista da pesada, nacionalista “orgânica”, monárquica, cheia de admiração pelo “velho dinheiro”, hostil aos costumes plebeus da Princesa Diana que tinha amantes errados, uma direita altiva e senhorita, entre caçadas vestidas a preceito e homenagens ao “senhor D. Duarte”, anti-europeia e anti-euro, “popular”, anti-centrista, cheia de empáfia patriótica – ele eram os antigos combatentes, a guerra no Ultramar, a reverência aos comandos e a Jaime Neves – e depois, por milagre, se tornou “euro-calma”, “democrata-cristã”, “social”, “europeísta”, até “fracturante”, amiga do MPLA, de Chávez, e de quem mais aparecer para a fotografia. Ele há um Deus vingativo, algures lá em cima, que fulmina pelo ridículo. 

O mais espantoso é que ninguém melhor do que Portas está a banalizar a soberania, a independência, a identidade nacional, Portugal. O modo utilitário como usa expressões como protectorado, “soberania”, as datas de 1580 e 1640, apenas para justificar o que lhe interessa, ou seja a impotência do governo face á troika e a sua desresponsabilização pela política de 2011-3 e preparar o estralejar de foguetes que o governo, com Portas na linha de partida, fará quando terminar o período de aplicação do memorando, é ofensivo para qualquer… patriota. 

Esta banalização da soberania, que é um ataque efectivo à independência do país e à democracia, fá-lo juntar-se às fileiras dos “europeístas” mais extremos para quem Portugal já devia ser há muito uma província dos Estados Unidos da Europa. Na verdade, o problema é outro, e tem a ver com a falta de sanção que o oportunismo táctico levado ao absoluto tem na nossa vida política.

(url)


MACHETE E A MULTIPLICIDADE DAS VOZES 



Rui Machete suscitou mais uma tempestade política com as suas declarações. Na verdade as actuais declarações são bem menos graves do que as anteriores sobre Angola, essas sim de enorme gravidade. O que disse Machete é uma evidência: Portugal não está em condições de regressar aos mercados, como todos sabemos desde o mês de Setembro, data pressuposta desse regresso que não existiu. Apontou um valor para os juros que levariam ao resgate, e sendo assim tornou-se particularmente incómodo para a “narrativa” governamental. A “narrativa”, ou seja a pseudo-interpretação propagandística usada pelo governo, é de que Portugal vai “cumprir” com honras o memorando, “ganhar soberania” e entrar com esse mérito num programa-prémio, o chamado “programa cautelar”. Como acontece com estas pseudo-interpretações, em que muita gente ou incauta ou de má-fé embarca, porque está do lado do governo, e justifica tudo e o seu contrário, a “narrativa” é factualmente falsa em todos os seus considerandos. 

 Nem Portugal “cumpriu” o memorando, falhando todos os números quanto ao défice e à dívida, nem o “plano cautelar” liberta a “soberania” portuguesa. Bem pelo contrário, institucionaliza constrangimentos económicos, sociais, e financeiros como “política única”. Num certo sentido, o “plano cautelar”, que é a colocação do país numa situação assistencial para muitos e bons anos, é pior para a soberania portuguesa do que a excepcionalidade do memorando. Ele representa aquilo a que o Primeiro-ministro chamou de “transferência automática” de poderes das “instituições representativas” portuguesas para Bruxelas. O “automático” significa que os portugueses nunca serão consultados sobre o que de mais importante se decide sobre o seu destino. A pressão sobre o PS para a o “consenso” também significa isso: garantir que só há “uma” política, e que, em tudo o que é decisivo, as eleições não valem nada e que não haverá qualquer outra consulta sobre estas matérias aos portugueses. Por exemplo, não haverá um referendo sobre os termos do “plano cautelar” cujas medidas gravosas estão cuidadosamente a ser escondidas. 

Machete veio dizer que só muito dificilmente Portugal escapará ou a outro resgate, ou a um qualquer plano que nos proteja dos mercados, e que os juros altos, e que subiram ainda mais nos últimos tempos devido às cenas de Portas, contrariam a bondade da política do governo. Ele destapou imprudentemente, para quem é membro do governo, o lixo que estava debaixo do tapete e que todos querem que permaneça bem escondido.

Acresce que Machete foi, nas suas declarações, um lídimo membro de um governo com dois Primeiros-ministros, dois discursos, dois governos “em um” como no champô - amaciador, cujos membros, a começar pelo Primeiro e o seu Vice, desenvolvem uma actividade pública que consiste em digladiarem-se um ao outro, quando não estão a tramar alguém que não tem defesa face ao estado. 

Neste caldo de cultura, como é que esperem que Machete actue? Para além do mais, já se percebeu que a impunidade é total.

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]