ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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7.12.12
AI AGUENTAM, AGUENTAM!
O Governo põe-se a jeito, é dadivoso, a troika elogia-o pela subserviência e pede mais. Ele diz sim e agradece
Vem a caminho um novo pacote de austeridade com o
nome pomposo de "refundação do Estado". Não é sobre a definição das
funções do Estado, como se tem feito o favor ao Governo de o tomar. Não é
nenhuma política nem de superfície, quanto mais de fundo: é o resultado
de uma negociação feita com a troika, sem nosso conhecimento, sobre a
qual abundam declarações contraditórias e algumas mentiras. É uma meta
numérica para os cortes, nada mais. Se tiver que se chegar lá "custe o
que custar", chega-se. Como tudo que tem sido feito nos últimos tempos
"vem no memorando", mesmo quando o que vem no memorando é outra coisa, o
mesmo memorando que o Governo nalguns casos diz que aplica, noutros
recusa aplicar (a diminuição do número de concelhos), noutros era para
aplicar e não aplicou (os 4,5%). O Governo põe-se a jeito, é dadivoso, a
troika elogia-o pela subserviência e pede-lhe mais. Ele diz sim, sim e
agradece.
Já houve o PEC1, PEC2, PEC3, o Orçamento do Estado de
2010 com muitas medidas restritivas, várias medidas avulsas do Governo
Sócrates, pelo menos cinco "pacotes", tendo ficado pelo caminho o PEC4.
Com Passos Coelho tivemos o corte de metade do subsídio de Natal em
2011, mais uma série de medidas avulsas, cortes de subsídios, alterações
na lei laboral, seguido do corte dos dois subsídios para a função
pública, mais uma subida do IVA. Depois veio o aumento da TSU, que ficou
no papel, e os vários anúncios de novas medidas sobre salários,
subsídios de desemprego, RMI, aumento generalizado de IMI, e por fim o
"enorme aumento de impostos". Todos os dias, inclusive na proposta de
diluição do subsídio de Natal ou de férias, os especialistas em direito
fiscal, contabilidade e economia encontram novas formas de extorquir
mais dinheiro, muitas ilegais. Mas who cares?. É o "ajustamento", a correr muito bem.
É
verdade que tecnicamente algumas destas medidas não são "pacotes de
austeridade", mas na prática são-no. E vão continuar. Todas as vezes que
o Governo falhar uma meta, haverá mais impostos. Por isso vai haver
muito mais impostos e mais pacotes de austeridade estão a caminho.
Isto
é a descrição da "coisa" em abstracto, agora veja-se como é em
concreto. Em Fevereiro de 2013, imaginemos um casal comum que vive em
Loures, ele encarregado de armazém, ela funcionária pública. Ganham nos
escalões das suas profissões um pouco acima do patamar mais baixo. Têm
trinta e sete, trinta e nove anos, dois filhos, vivem num andar barato
que compraram a crédito numa urbanização. Até ao fim deste ano,
conseguiram aguentar-se: ambos têm salário, embora ambos também já
tenham perdido parte do seu salário, com impostos e com o corte dos
subsídios na função pública. Ele teve algum atraso no salário, mas o
patrão conseguiu arranjar dinheiro para pagar aos seus cinco empregados.
Costumavam poupar alguma coisa e uma vez fizeram férias em Espanha, num
pacote turístico muito barato que pagaram sem aceder ao crédito. Aliás,
não estão especialmente endividados, a não ser a casa. Levantaram uma
pequena poupança quando terminou o prazo e, quase sem dar por ela,
gastaram-na. Porém, nada de grave, têm medo das coisas piorarem, mas até
agora apenas apertaram o cinto, "ajustaram-se" cortando nalgumas
despesas.
Em Fevereiro de 2013, perceberam ao olhar o salário que
recebem, que cerca de trinta por cento desapareceu. É muito. Estavam no
limiar, agora estão abaixo do limiar, o dinheiro deixou de chegar. Não
sabem como vai ser. A primeira consequência é que não há dinheiro para
as propinas do filho mais velho, que estuda Psicologia, mas ainda não
sabem como lhe vão dizer. Lembram-se do "piegas" do primeiro-ministro e
começam a ficar zangados. Compram o Correio da Manhã, antes compravam o Diário de Notícias, mas agora não só compram o Correio da Manhã, como o lêem com mais atenção. Antes compravam o Expresso, agora decidiram poupar e uma das primeiras despesas a evitar foi o Expresso. A seguir virá o Correio da Manhã.
No
primeiro semestre de 2013, apercebem-se de que cada conta que chega
para se pagar implica que outra conta não é paga. Em Maio, cancelaram um
empréstimo a prazo, toda a sua poupança, perdendo os juros. O banco fez
tudo para atrasar a liquidação do empréstimo, inclusive oferecendo um
novo crédito para consumo, para remediar a situação, mas ele sabia
alguma coisa de contas e assustou-se com o que iria pagar e recusou. A
partir desse mês, as contas começaram a ser pagas com a pequena
poupança, mas cada vez havia mais contas e menos dinheiro para as pagar.
A luz, gás, a água tinham subido, as despesas do telemóvel também. A
prestação da casa era a única coisa que não tinha subido, e por isso foi
a última coisa a deixar de ser paga, o que começou a acontecer por
volta de Junho. Tinham a Sport TV, mas cancelaram a assinatura ainda em
2012, e em 2013, as contas da televisão, Internet, telemóvel foram as
primeiras a deixarem de serem pagas. Pagaram o seguro do carro, mas já
não pagaram o seguro da casa. Deixou de haver dinheiro para o passe dos
filhos, para o condomínio, para roupa, para substituir um microondas
avariado.
Quando ele recebeu o seu IRS, para além do que ele e ela
tinham já descontado, e logo a seguir o IMI pela casa, já não havia
dinheiro para pagar. A subida fora brutal, tanta que pensavam ter sido
um erro, mas sabiam que não valia a pena protestar contra o fisco, e não
fizeram nada. Agora tinham medo de ir à caixa do correio ou de receber
mensagens no telemóvel da Via CTT, nem as abriam porque já estavam em
"incumprimento", a caminho de execuções fiscais. Prazos cada vez mais
curtos precediam uma nova conta das Finanças e uma nova ameaça de
execução. Numa espécie de vingança contra o fisco faziam gala de não
pedir factura de nada, a mesma atitude que alguns colegas no emprego já
tinham tomado. Não servia para nada, ajudavam uns aflitos como eles, e
atingiam o Passos e o Gaspar.
A seguir às férias ele perdeu o
emprego, porque o armazém fechou. Ela dissera-lhe que muitas pessoas na
função pública estavam a ser mandadas para a "mobilidade especial" com
grandes cortes salariais. Quando ele lhe disse que ia pedir o subsídio
de desemprego, enquanto procurava um novo emprego que sabia não ir
encontrar porque era "velho" de mais, ela confessou-lhe a chorar que
tinha a certeza que estava para ir para a "mobilidade especial", visto
que era o "chefe" que escolhia e nunca se tinha dado bem com ele. No
final do ano, o desespero era total, os conflitos no interior do casal
eram quotidianos. Não se divorciavam porque não havia dinheiro para
separar casas. Ele jurava que nunca mais votaria na vida, para "não dar
de mamar a estes corruptos", ela participara pela primeira vez numa
manifestação "indignada". Perceberam pela primeira vez o preço de trocar
direitos por assistência.
Em 2014, não havia família, a casa
estava em risco, o carro fora-se, e nenhum conseguia arranjar um único
papel porque faltava uma declaração fiscal impossível de tirar sem
"regularizar" as dívidas. De há muito que o seu prédio deixara de ter
elevador, porque ninguém pagava o condomínio. Subiam cinco andares a pé,
mas sabiam o drama que isso era para a senhora idosa do sétimo, que só
subia e descia com muita dificuldade para ir levantar a reforma. Uma vez
encontraram-na ofegante sentada na escada.
Estavam falidos e
tinham ido à advogada da DECO, para fazer essa declaração. Sentiam uma
enorme violência interior, e oscilavam entre uma apatia exterior, e uma
vontade de partir tudo. Ambos pensaram no suicídio, mas foi só pensar.
Ela pensou ir ao "Congresso Financeiro" da IURD, ele em assaltar um
banco, mas foi só pensar. Será que os acomodados do poder acreditam que
estes pensamentos não atravessam a cabeça de muita gente que nunca
pensou tê-los? Desiludam-se, as coisas estão muito pior do que vem nos
jornais.
Em dois anos tinham a vida estuporada, não acreditavam em
nada. Tinham vergonha dos filhos, tinham vergonha dos pais, tinham
vergonha dos vizinhos, tinham vergonha de si próprios. Não sabiam como
iriam continuar a viver. Tinham perdido qualquer sonho, qualquer
expectativa, qualquer esperança. Para a frente era só descer. E são
muitos, mesmo muitos, quase todos. Experimentem passear a vossa riqueza,
a vossa indiferença diante deles, sem polícias, sem barreiras de metal,
e dizer "aguentam, aguentam!" aos "piegas".
(Versão do Público de 1 de Dezembro de 2012.)
(url) 2.12.12
munching a plum on
the street a paper bag
of them in her hand
They taste good to her
They taste good
to her. They taste
good to her
You can see it by
the way she gives herself
to the one half
sucked out in her hand
Comforted
a solace of ripe plums
seeming to fill the air
They taste good to her
(William Carlos Williams)
(url) 1.12.12
(url)
ÍNDICE DO SITUACIONISMO: A LIBERDADE DE IMPRENSA CAPTURADA
A questão do situacionismo não é de conspiração, é de respiração.
E, nalguns casos, de respiração assistida.
Alguém me explique,- não que eu precise, mas outros sim, - o silêncio absurdo e muito, muito preocupante, da nossa comunicação social (incluindo blogues e "redes sociais") face aos sucessivos artigos do Jornal de Angola, orgão do MPLA e do governo, sobre Portugal e os portugueses. E o silêncio do governo, o silêncio dos comentadores, e o silêncio do silêncio. Eu e outros somos sujeitos a insultos pessoais miseráveis, mas isso é um pequeno preço a pagar para provocar um debate público sobre o que se está a passar e a "captura" da nossa liberdade pública pelos interesses coligados do dinheiro de cá, com o dinheiro de lá. Como os insultos, as ameaças (que também há) e a baixaria generalizada não me intimidam, aqui vai exemplo de um Rui Ramos que escreve no Jornal de Angola sobre os portugueses:
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OS INTELECTUAIS E "A ANULAÇÃO DO DESTINO"
Ninguém pode, a não ser por abuso, tratar os portugueses como se não estivessem conscientes de que os tempos estão difíceis Pode-se sempre dizer que qualquer tempo é um tempo de
exigência para os intelectuais, embora os intelectuais não tenham uma
história particularmente brilhante de "interpretação" dos tempos. Bem
pelo contrário, os intelectuais têm uma história no século XX de
participarem activamente nas grandes mentiras do século, fascismo e
comunismo em particular, e de justificarem as mais monstruosas das
ideias e das práticas, quando estas enunciavam, mais do que praticavam,
dar-lhes um papel de interlocutor privilegiado na "interpretação" do que
se passava.
Mas, também por isso, tempos como os de hoje são
particularmente exigentes para a réstia de função que ainda podemos
atribuir aos intelectuais. Por duas razões: há uma enorme circulação de
mentiras em curso, e há um enorme sofrimento na maioria das pessoas
comuns e uma perda colectiva da esperança, em si mesmos, na sociedade,
na democracia, no país. Esta é a crise perfeita, como a tempestade
perfeita.
Comecemos pelo sofrimento. A não ser em guerra, onde
todo o tipo de violências, a começar pela morte, marca indelevelmente a
vida de cada um, o plano inclinado da pobreza e da miséria são
particularmente destrutivos. Não estamos numa parte do mundo onde se
morra à fome, onde a vida seja destruída por epidemias evitáveis, ou no
limiar da subsistência. Nem vale a pena perdermos tempo com esses
exageros que muitas vezes nos deitam à cara, para estarmos mesmo assim
felizes porque não passamos o pior. Não é a miséria africana, a
violência urbana latino-americana, o espectro da pobreza asiática do
Bangladesh.
Não é isso. É uma sociedade europeia, saída ainda há
muito pouco tempo de uma pobreza ancestral rural e de bairro de lata, da
emigração e da tuberculose, da mortalidade infantil e do analfabetismo,
para um mínimo de condições de vida, de esperança, de conforto urbano,
de consumos "espirituais", de posse de alguns bens materiais e de
segurança e alguns direitos precários. Tudo pouco acima do mínimo, com
diminuição da pobreza, criação de uma classe média, e também retorno de
alguma riqueza. A diferenciação social e a exclusão continuaram, mas
foram colocadas num patamar diferente.
Foi tudo uma ilusão
artificial, como agora nos dizem? Teve aspectos ilusórios, expectativas
excessivas, mas não foi uma ilusão, foi uma melhoria. Não precisamos que
nos venham dar lições morais com a parte da ilusão, para nos arrancarem
as melhorias, porque a melhoria de vida dos portugueses deve ser
defendida ao limite. O que conseguiram nos últimos anos foi feito com
muito esforço, já para não falar da obrigação de reparação do muito que
se devia ao homem comum, pobre e trabalhador, pela ideologia da
santidade da "pobreza honrada" dos últimos quarenta anos, que deixou uma
pilha de ouro no banco e uma população analfabeta e cujos filhos
morriam no parto como tordos.
A discussão em "economês" dos
nossos dias faz-se para legitimar o desprezo por estas melhorias, tidas
como esbanjamento; pela esperança das pessoas em não perder o pouco que
conseguiram, tido por uma reivindicação egoísta de direitos; a que se
soma um efectivo desprezo pelo seu sofrimento, tido como pieguice.
Sempre achei que atribuir aos governantes que têm de tomar medidas
difíceis estados de alma de indiferença face às dificuldades era
excessivo, mas agora não tenho qualquer dúvida sobre a frieza e a
incompreensão com que olham para o sofrimento dos seus concidadãos.
No
meio disto tudo, acabou a esperança, ou seja, acabou o futuro. Para
várias gerações, em particular aquela que o desemprego de longa duração -
um eufemismo para não dizer eterno - marca com enorme violência, o
futuro acabou. Sabem, com um saber magoado mas certeiro, que a partir de
agora é só caminhar num plano inclinado sem fim, ou seja, até ao fim
dos seus dias. O resultado é não só uma vida devastadora no presente,
onde tudo está a começar ou já começou, e onde o amanhã é apenas o
agravamento do dia de hoje. Estes homens e mulheres estão sozinhos e
também já perceberam que ninguém cuida deles. Estão do lado torto de
tudo, não são "jovens" e por isso nem sequer têm direito ao discurso
retórico sobre a juventude, são os restos vivos do "esbanjamento" do
passado, mesmo quando eram apenas operários têxteis, metalúrgicos,
empregadas de limpeza, secretárias, professores, enfermeiros,
funcionários públicos, encarregados de armazém, trolhas. Ao lado deles,
os jovens têm um futuro radioso, só que fora do país.
Por tudo
isto, as mentiras são insuportáveis, até porque as pessoas comuns sabem a
verdade. Toda a gente tem uma percepção realista da situação, as
pessoas sabem que não vão poder continuar como antes, sabem que as
dificuldades são inevitáveis, e sabem que medidas de autodefesa têm que
tomar, com as suas poupanças e com os seus gastos. Ninguém pode, a não
ser por abuso, tratar os portugueses como se não estivessem conscientes
de que os tempos estão difíceis, e que não podem esperar muito, sendo
que este "ajustamento" natural das pessoas já se deu há muito.
Só
que uma coisa é esta percepção e outra é validar políticas cujo
objectivo não é corrigir excessos, mas empobrecer estruturalmente o
país, para que ele possa fornecer mão-de-obra barata, e atirar para a
caridade ou para o estrangeiro os muitos milhões de portugueses que
estão a mais neste glorioso plano de "refundar" Portugal como um país
estruturalmente pobre, que talvez daqui a algumas décadas - a palavra
surge com cada vez mais regularidade nos discursos do poder - possa
ficar um pouco menos pobre, se "trabalhar muito" e "fizer o trabalho de
casa". Será que os governantes não percebem como isto é ofensivo?
Daí
as mentiras e a petulância. Um secretário de Estado resumiu essa
mentira entranhada quando afirmou no Parlamento que os portugueses
deviam estar felizes porque iam ter a devolução de um dos subsídios
tirados, porque o Governo cumpria, presume-se com alegria, a decisão do
Tribunal Constitucional. Aliás, ele apenas se excitou canhestramente com
uma das muitas mentiras circulantes cujo melhor exemplo é o Orçamento
do Estado e as sucessivas avaliações positivas da troika, peças de uma política cujos perigos dois ou três dias depois vem o FMI enunciar. A verdadeira avaliação da troika é essa, repete o que toda a gente está a dizer do Orçamento, antecipa o que vai acontecer, mas "Tout va bien Madame la Marquise".
Há
por isso mais verdade, na tentativa tardia e desesperada de no
Orçamento comunitário se tentar obter o maior número de fundos para
Portugal, do que no mambo jambo irreal do nosso Orçamento.
Porque, face ao falhanço dos méritos da política de "ajustamento", os
nossos governantes, mais Passos do que Gaspar, voltam-se desesperados
para as ajudas europeias, porque sabem que são a única esperança de
poderem minimizar as suas asneiras. São hayekianos cá dentro e keynesianos lá fora e serão o que for preciso porque se começa a perceber o desespero nas hostes.
Na
verdade, os portugueses também já "ajustaram" os governantes. "Miúdos",
"garotos", como o povo manifestante bem intui, percebendo a sua
inexperiência da "vida", saídos da pior escola, carreiristas e espertos,
obcecados pela "imagem" mediática, conhecedores de mil e um truques,
tão vingativos como ignorantes, deslumbrados pelo seu poder actual,
subservientes face a todos os poderosos, e que incorporaram um
profetismo grandioso sobre "refundar" o país, que rapidamente se torna
numa luta pela própria sobrevivência política, custe o que custar. O
resto é expendable, no inglês técnico de que gostam.
Pode ser que, mais uma vez, os intelectuais traiam, com a obsessão de respeitabilidade, o respeitinho moderado e o sufoco dos bens escassos para distribuir. Mas a obrigação do intelectual, como escreveu Emerson, é "anular o destino", pensar para haver "liberdade". Presos neste miserável destino, o sofrimento de muitos é uma efectiva ameaça à liberdade.
(Versão do Público de 24 de Novembro de 2012.)
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ESQUERDA MOLE, ESQUERDA DURA E ESQUERDA VIOLENTA (5): E A VIOLENTA
11. Existe hoje uma esquerda violenta e essa esquerda está a recrutar nos filhos da classe média radicalizada. Seria de estranhar que assim não fosse. As divisões no BE, com a criação do Movimento Alternativa Socialista, mais radicalizado, e alguns movimentos de aliança entre franjas do BE, jovens comunistas “leninistas”, trotsquistas desirmanados, no Movimento Sem Emprego, jornais e revistas como Rubra, várias páginas do Facebook, alguns neo-anarquistas, estão a dar origem aos grupos que ficam no fim das manifestações diante dos polícias a ver se há pancada.
12. Os comunistas desconfiam deles, que acham demasiado folclóricos para seu gosto, e compreendem o efeito perverso da simulação simbólica da violência para as câmaras verem, sem consequências. Com máscaras do Guy Fawkes, lenços palestinianos a cobrir a cara, parkas a esconder a cabeça e muto arremedos diante dos polícias, derrubando as barreiras que já se percebeu, pelo comportamento da policia, não é considerado motivo para carga, e ficando ali a provocar com petardos e garrafas de cerveja, diante dos robocops, acabam por prestar um péssimo serviço à violência revolucionária que pretendem encenar. Um bom português, amigo dos forcados amadores, dirá “se eles vão lá para a porrada, por que é que não andam á porrada? Parecem aqueles que dizem “segurem-me senão vou-me a eles, e não vão.”
13. O que se passa no conjunto de todas as esquerdas, moles, duras e violentas é a sua enorme divisão não só estratégica, como táctica. As suas ideias são diferentes, as suas práticas são diferentes, os seus motivos são diferentes. Enormes diferenças geracionais, de estilo, cultura política e acima de tudo, de condição social, pesam sobre esta desunião de forma até agora decisiva. Não podem mobilizar a gigantesca força latente que a crise gerou, - a recusa populista dos partidos e a raiva contra os políticos, - e por isso acantonam-se nos seus territórios entre a nostalgia e encenação. Vão acabar por votar Seguro contra Passos Coelho, e é difícil encontrar destino mais irónico para a esquerda portuguesa.
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ESQUERDA MOLE, ESQUERDA DURA E ESQUERDA VIOLENTA (4): A DURA
7. A esquerda dura é o PCP e a CGTP e é composta por um contínuo social e político muito consistente e entretecido. Tem uma história, tradições, famílias e identidade. Tem uma base social com muito maior homogeneidade do que o PS e o BE e essa base social está em grande parte organizada no partido e nos sindicatos por mecanismos de enquadramento e mobilização. Não há nada de semelhante em qualquer outro partido, e a comparação que fazia sentido com o PSD do passado, já não tem sentido para o PSD do presente.
8. A direcção de Jerónimo de Sousa trouxe um ainda maior reforço de identidade, levando o PCP pela primeira vez na sua história a fazer manifestações como partido e não disfarçado de CDU, ou de qualquer outro rótulo “unitário”. Jerónimo não suscita o respeito reverencial de Cunhal, mas também não reproduz o seu afastamento aristocrático, não desejado mas real. Jerónimo é “um deles”, próximo e igual, que transporta consigo o mundo da base comunista como ninguém o fez nunca na história do PCP, a que acrescenta a força e a empatia gerada por ser o único líder político que no parlamento fica genuinamente indignado com a sorte dos “seus” e dos portugueses. É por isso que ele pode sair á rua e ser recebido com estima, por muitos que não são comunistas, mas que reconhecem a sua genuinidade. E também por isso travou a crise do PCP, embora não a tenha resolvido. Mas é um facto que o PCP sobreviveu melhor à crise do que muitos outros partidos europeus, e é impossível falar da esquerda activa e que existe sem falar do PCP. Em França, o PCF, por exemplo, é muito irrelevante.
9. Mas o PCP ao reforçar a identidade está a acentuar o seu acantonamento, as suas fronteiras e limites. Usa e abusa da linguagem de pau, como é o caso da designação canónica do acordo com a troika de “pacto de agressão”, e tendo a parte de leão na resistência organizada ao governo, das vaias às greves, parece ter atingido uma barreira de crescimento que a prazo se revelará como impotência.
10. A CGTP tem resistido á crise melhor do que a UGT, perdida nas suas contradições. Mas a CGTP com a sua nova liderança, - que é um erro considerar incapaz,- tem tido também como reflexo do PCP, um processo de auto-afirmação sectária, que lhe pode dar capacidade de organização, mas que dificulta a mobilização. Não se compreende do ponto de vista da eficácia, por exemplo, da greve geral, que a CGTP não apareça genuinamente interessada em obter a adesão dos sindicatos da UGT. Pode-se dizer que muitos vão aderir, mas o impacto de uma greve conjunta das duas centrais seria maior. No actual contexto de contínuas humilhações à UGT, seria difícil, face a um esforço de entendimento e consulta efectivo, a sua direcção recusar uma greve em que os interesses de alguns dos seus principais sectores sindicais, função pública, banca, seguros, são dos mais afectados pelas medidas do governo.
(Continua.)
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ESQUERDA MOLE, ESQUERDA DURA E ESQUERDA VIOLENTA (3): A MOLE-DURA
6. Classificar o Bloco de Esquerda não é difícil: é hoje um partido socialista radical, próximo de partidos como era o PSU e o PSIUP no passado em França e Itália. No fundo, foi sempre este o projecto de muitos trotsquistas, e ele foi conseguido. O problema do BE é que é pouco para a crise que se vive, o que torna a sua posição demasiado indistinta. Reduzido à sua dimensão parlamentar tem vindo a perder a rua mais radical, deixando a mobilização preguiçosa, fácil e enganosa nas redes sociais, sobrepor-se á organização pura e dura. Com isto, e aqui os comunistas têm razão, os governos podem bem. Está por isso inócuo e acaba por ficar dependente apenas da evolução do PS, que é um pouco esperar sentado por um milagre.
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ESQUERDA MOLE, ESQUERDA DURA E ESQUERDA VIOLENTA (2): A MOLE
4. Comecemos pela esquerda mole, ou seja o PS. Sem o PS nada se faz, com o PS nada se faz, este é o dilema dos que querem pensar ou “trazer” o PS à esquerda, o que é a mesma coisa. O PS tornou-se antes de tudo, como o PSD, numa partidocracia de governo, que não conhece outras regras que não seja manter os lugares, carreiras, território e influência partidária. Não existe nem identidade política, nem ideológica, nem sequer a expressão de interesses sociais e isso verifica-se numa altura em que a crise atinge profundamente as bases sociais dos dois partidos e acaba por não ter expressão no topo. A lógica do topo é apenas a da partidocracia e por isso misturam-se com o establishment que servem, e absorvem todo o pensamento balofo que para aí circula. A geração de Seguro e de Passos Coelho nos partidos, transporta consigo uma enorme necessidade de respeitabilidade, eles sabem que os de cima com quem lidam, não os respeitam, e os de baixo os não consideram, e por isso são pouco mais do que interpretes do mainstream dos interesses já estabelecido.
5. Por isso, o PS é a grande dificuldade de toda a esquerda, porque no fundo quem chega á sua direcção não é de esquerda, como quem chega à direcção do PSD, não é social-democrata. Entalado entre o silêncio incomodado de Seguro sobre Sócrates, o PS é sempre presa fácil para a propaganda governamental e para a sua “narrativa” da crise. Por outro lado, se assumisse o “socratismo”, institucionalizaria um keynesianismo corrupto, pragmático, e oportunista, tão desertificador como a actual indecisão estratégica e fala-baratismo táctico. Vai ser difícil sair disto.
(Continua.)
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© José Pacheco Pereira
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