ABRUPTO

7.12.12


AI AGUENTAM, AGUENTAM!


O Governo põe-se a jeito, é dadivoso, a troika elogia-o pela subserviência e pede mais. Ele diz sim e agradece


Vem a caminho um novo pacote de austeridade com o nome pomposo de "refundação do Estado". Não é sobre a definição das funções do Estado, como se tem feito o favor ao Governo de o tomar. Não é nenhuma política nem de superfície, quanto mais de fundo: é o resultado de uma negociação feita com a troika, sem nosso conhecimento, sobre a qual abundam declarações contraditórias e algumas mentiras. É uma meta numérica para os cortes, nada mais. Se tiver que se chegar lá "custe o que custar", chega-se. Como tudo que tem sido feito nos últimos tempos "vem no memorando", mesmo quando o que vem no memorando é outra coisa, o mesmo memorando que o Governo nalguns casos diz que aplica, noutros recusa aplicar (a diminuição do número de concelhos), noutros era para aplicar e não aplicou (os 4,5%). O Governo põe-se a jeito, é dadivoso, a troika elogia-o pela subserviência e pede-lhe mais. Ele diz sim, sim e agradece. 


Já houve o PEC1, PEC2, PEC3, o Orçamento do Estado de 2010 com muitas medidas restritivas, várias medidas avulsas do Governo Sócrates, pelo menos cinco "pacotes", tendo ficado pelo caminho o PEC4. Com Passos Coelho tivemos o corte de metade do subsídio de Natal em 2011, mais uma série de medidas avulsas, cortes de subsídios, alterações na lei laboral, seguido do corte dos dois subsídios para a função pública, mais uma subida do IVA. Depois veio o aumento da TSU, que ficou no papel, e os vários anúncios de novas medidas sobre salários, subsídios de desemprego, RMI, aumento generalizado de IMI, e por fim o "enorme aumento de impostos". Todos os dias, inclusive na proposta de diluição do subsídio de Natal ou de férias, os especialistas em direito fiscal, contabilidade e economia encontram novas formas de extorquir mais dinheiro, muitas ilegais. Mas who cares?. É o "ajustamento", a correr muito bem.


É verdade que tecnicamente algumas destas medidas não são "pacotes de austeridade", mas na prática são-no. E vão continuar. Todas as vezes que o Governo falhar uma meta, haverá mais impostos. Por isso vai haver muito mais impostos e mais pacotes de austeridade estão a caminho.


Isto é a descrição da "coisa" em abstracto, agora veja-se como é em concreto. Em Fevereiro de 2013, imaginemos um casal comum que vive em Loures, ele encarregado de armazém, ela funcionária pública. Ganham nos escalões das suas profissões um pouco acima do patamar mais baixo. Têm trinta e sete, trinta e nove anos, dois filhos, vivem num andar barato que compraram a crédito numa urbanização. Até ao fim deste ano, conseguiram aguentar-se: ambos têm salário, embora ambos também já tenham perdido parte do seu salário, com impostos e com o corte dos subsídios na função pública. Ele teve algum atraso no salário, mas o patrão conseguiu arranjar dinheiro para pagar aos seus cinco empregados. Costumavam poupar alguma coisa e uma vez fizeram férias em Espanha, num pacote turístico muito barato que pagaram sem aceder ao crédito. Aliás, não estão especialmente endividados, a não ser a casa. Levantaram uma pequena poupança quando terminou o prazo e, quase sem dar por ela, gastaram-na. Porém, nada de grave, têm medo das coisas piorarem, mas até agora apenas apertaram o cinto, "ajustaram-se" cortando nalgumas despesas. 


Em Fevereiro de 2013, perceberam ao olhar o salário que recebem, que cerca de trinta por cento desapareceu. É muito. Estavam no limiar, agora estão abaixo do limiar, o dinheiro deixou de chegar. Não sabem como vai ser. A primeira consequência é que não há dinheiro para as propinas do filho mais velho, que estuda Psicologia, mas ainda não sabem como lhe vão dizer. Lembram-se do "piegas" do primeiro-ministro e começam a ficar zangados. Compram o Correio da Manhã, antes compravam o Diário de Notícias, mas agora não só compram o Correio da Manhã, como o lêem com mais atenção. Antes compravam o Expresso, agora decidiram poupar e uma das primeiras despesas a evitar foi o Expresso. A seguir virá o Correio da Manhã.


No primeiro semestre de 2013, apercebem-se de que cada conta que chega para se pagar implica que outra conta não é paga. Em Maio, cancelaram um empréstimo a prazo, toda a sua poupança, perdendo os juros. O banco fez tudo para atrasar a liquidação do empréstimo, inclusive oferecendo um novo crédito para consumo, para remediar a situação, mas ele sabia alguma coisa de contas e assustou-se com o que iria pagar e recusou. A partir desse mês, as contas começaram a ser pagas com a pequena poupança, mas cada vez havia mais contas e menos dinheiro para as pagar. A luz, gás, a água tinham subido, as despesas do telemóvel também. A prestação da casa era a única coisa que não tinha subido, e por isso foi a última coisa a deixar de ser paga, o que começou a acontecer por volta de Junho. Tinham a Sport TV, mas cancelaram a assinatura ainda em 2012, e em 2013, as contas da televisão, Internet, telemóvel foram as primeiras a deixarem de serem pagas. Pagaram o seguro do carro, mas já não pagaram o seguro da casa. Deixou de haver dinheiro para o passe dos filhos, para o condomínio, para roupa, para substituir um microondas avariado.


Quando ele recebeu o seu IRS, para além do que ele e ela tinham já descontado, e logo a seguir o IMI pela casa, já não havia dinheiro para pagar. A subida fora brutal, tanta que pensavam ter sido um erro, mas sabiam que não valia a pena protestar contra o fisco, e não fizeram nada. Agora tinham medo de ir à caixa do correio ou de receber mensagens no telemóvel da Via CTT, nem as abriam porque já estavam em "incumprimento", a caminho de execuções fiscais. Prazos cada vez mais curtos precediam uma nova conta das Finanças e uma nova ameaça de execução. Numa espécie de vingança contra o fisco faziam gala de não pedir factura de nada, a mesma atitude que alguns colegas no emprego já tinham tomado. Não servia para nada, ajudavam uns aflitos como eles, e atingiam o Passos e o Gaspar.


A seguir às férias ele perdeu o emprego, porque o armazém fechou. Ela dissera-lhe que muitas pessoas na função pública estavam a ser mandadas para a "mobilidade especial" com grandes cortes salariais. Quando ele lhe disse que ia pedir o subsídio de desemprego, enquanto procurava um novo emprego que sabia não ir encontrar porque era "velho" de mais, ela confessou-lhe a chorar que tinha a certeza que estava para ir para a "mobilidade especial", visto que era o "chefe" que escolhia e nunca se tinha dado bem com ele. No final do ano, o desespero era total, os conflitos no interior do casal eram quotidianos. Não se divorciavam porque não havia dinheiro para separar casas. Ele jurava que nunca mais votaria na vida, para "não dar de mamar a estes corruptos", ela participara pela primeira vez numa manifestação "indignada". Perceberam pela primeira vez o preço de trocar direitos por assistência.


Em 2014, não havia família, a casa estava em risco, o carro fora-se, e nenhum conseguia arranjar um único papel porque faltava uma declaração fiscal impossível de tirar sem "regularizar" as dívidas. De há muito que o seu prédio deixara de ter elevador, porque ninguém pagava o condomínio. Subiam cinco andares a pé, mas sabiam o drama que isso era para a senhora idosa do sétimo, que só subia e descia com muita dificuldade para ir levantar a reforma. Uma vez encontraram-na ofegante sentada na escada.


Estavam falidos e tinham ido à advogada da DECO, para fazer essa declaração. Sentiam uma enorme violência interior, e oscilavam entre uma apatia exterior, e uma vontade de partir tudo. Ambos pensaram no suicídio, mas foi só pensar. Ela pensou ir ao "Congresso Financeiro" da IURD, ele em assaltar um banco, mas foi só pensar. Será que os acomodados do poder acreditam que estes pensamentos não atravessam a cabeça de muita gente que nunca pensou tê-los? Desiludam-se, as coisas estão muito pior do que vem nos jornais.


Em dois anos tinham a vida estuporada, não acreditavam em nada. Tinham vergonha dos filhos, tinham vergonha dos pais, tinham vergonha dos vizinhos, tinham vergonha de si próprios. Não sabiam como iriam continuar a viver. Tinham perdido qualquer sonho, qualquer expectativa, qualquer esperança. Para a frente era só descer. E são muitos, mesmo muitos, quase todos. Experimentem passear a vossa riqueza, a vossa indiferença diante deles, sem polícias, sem barreiras de metal, e dizer "aguentam, aguentam!" aos "piegas".

(Versão do Público de 1 de Dezembro de 2012.)

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2.12.12


EARLY  MORNING BLOGS   
 
2279- To a Poor Old Women

munching a plum on 
the street a paper bag
of them in her hand

They taste good to her
They taste good 
to her. They taste
good to her

You can see it by
the way she gives herself
to the one half
sucked out in her hand

Comforted
a solace of ripe plums
seeming to fill the air
They taste good to her
 
(William Carlos Williams)

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1.12.12


ESPÍRITO DO TEMPO:  HOJE
 

 
Passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro. (RM)

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ÍNDICE DO SITUACIONISMO: A LIBERDADE DE IMPRENSA CAPTURADA 

A questão do situacionismo não é de conspiração, é de respiração.
E, nalguns casos, de respiração assistida.

Alguém  me explique,-  não que eu precise, mas outros sim, - o silêncio absurdo e muito, muito preocupante, da nossa comunicação social (incluindo blogues e "redes sociais") face aos sucessivos artigos do Jornal de Angola, orgão do MPLA e do governo, sobre Portugal e os portugueses. E o silêncio do governo, o silêncio dos comentadores, e o silêncio do silêncio. Eu e outros somos sujeitos a insultos pessoais miseráveis, mas isso é um pequeno preço a  pagar para provocar um debate público sobre o que se está  a passar e a "captura" da nossa liberdade pública pelos interesses coligados do dinheiro de cá, com o dinheiro de lá. Como os insultos, as ameaças (que também há) e a baixaria generalizada não me intimidam, aqui vai exemplo de um Rui Ramos que escreve no Jornal de Angola sobre os portugueses:

O povo português é tradicionalmente um povo pobre, povo de olhar o chão para ver se encontra centavos, tostões ou cêntimos. Mas de repente votou num poder que lhe abriu as portas do paraíso artificial. Desatou a contrair empréstimos para comprar primeira, segunda e terceira habitação, carros para cada membro da família, computador para cada membro da família, cão para cada membro da família, um telemóvel por cada operadora para cada membro da família.
Os bancos fizeram o seu trabalho de casa, deram empréstimos a cada membro da família, deram cartões de crédito, cinco para cada membro da família, até bebé tem cartão de crédito e empréstimo bancário em Portugal.
Narizes empinados, até pareciam ricos. Parecia que estavam a crescer, a subir. Tinha até motorista de autocarro 463 que não parava na paragem quando trabalhadora cabo-verdiana tocava. Trabalhar para pretos?
Menina mais castanha era chamada de “suja”, vai para a tua terra. Presidente da Câmara de Lisboa apanhou sol desde os tempos dos avós e muitas pessoas chamavam-lhe “o preto da Câmara”. Gostam muito de chamar “pretinho”, gostam mesmo.
De repente acabou a teta da loba, secou, voltou ao que era, como sempre foi: país muito pobre. Quase dois milhões no desemprego para o resto da vida. Prosperam negócios ilegais, nas cervejarias trafica-se droga na cara da polícia, à luz do dia assaltam-se pessoas e supermercados impunemente, a polícia diz que não pode fazer nada.
Então chegam notícias, não de Preste João, mas da teta angolana: tem leite enriquecido.
Chiu, não chama mais preto, eles não gostam e não te dão visto. E então a procissão de nossa senhora da esperança avança para Alcântara, enche o passeio como uma jibóia. Marcam lugar, vão rápido no bar, menina, uma bica bem escura, eu não sou racista. Na bicha só se ouve “eu não sou racista, nunca fui, eu nunca chamei preto a ninguém, acho que me vão dar visto…
Esses são os desgraçados, arruinados, miseráveis de um país no abismo. Outros vivem desses. Os candongueiros, os fugitivos dos impostos, mas também os intelectualóides que já foram paridos com um livro na mão. Passam lá de madrugada quando voltam para casa e ao verem aquela bicha espumam como cão vadio, põem cara de podre e murmuram “pretos da merda”, passam na bicha e trombeiam “aquilo lá é uma ditadura, os chineses comem pessoas…”.


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OS INTELECTUAIS E "A ANULAÇÃO DO DESTINO"







Ninguém pode, a não ser por abuso, tratar os portugueses como se não estivessem conscientes de que os tempos estão difíceis Pode-se sempre dizer que qualquer tempo é um tempo de exigência para os intelectuais, embora os intelectuais não tenham uma história particularmente brilhante de "interpretação" dos tempos. Bem pelo contrário, os intelectuais têm uma história no século XX de participarem activamente nas grandes mentiras do século, fascismo e comunismo em particular, e de justificarem as mais monstruosas das ideias e das práticas, quando estas enunciavam, mais do que praticavam, dar-lhes um papel de interlocutor privilegiado na "interpretação" do que se passava. 


Mas, também por isso, tempos como os de hoje são particularmente exigentes para a réstia de função que ainda podemos atribuir aos intelectuais. Por duas razões: há uma enorme circulação de mentiras em curso, e há um enorme sofrimento na maioria das pessoas comuns e uma perda colectiva da esperança, em si mesmos, na sociedade, na democracia, no país. Esta é a crise perfeita, como a tempestade perfeita.

Comecemos pelo sofrimento. A não ser em guerra, onde todo o tipo de violências, a começar pela morte, marca indelevelmente a vida de cada um, o plano inclinado da pobreza e da miséria são particularmente destrutivos. Não estamos numa parte do mundo onde se morra à fome, onde a vida seja destruída por epidemias evitáveis, ou no limiar da subsistência. Nem vale a pena perdermos tempo com esses exageros que muitas vezes nos deitam à cara, para estarmos mesmo assim felizes porque não passamos o pior. Não é a miséria africana, a violência urbana latino-americana, o espectro da pobreza asiática do Bangladesh.
Não é isso. É uma sociedade europeia, saída ainda há muito pouco tempo de uma pobreza ancestral rural e de bairro de lata, da emigração e da tuberculose, da mortalidade infantil e do analfabetismo, para um mínimo de condições de vida, de esperança, de conforto urbano, de consumos "espirituais", de posse de alguns bens materiais e de segurança e alguns direitos precários. Tudo pouco acima do mínimo, com diminuição da pobreza, criação de uma classe média, e também retorno de alguma riqueza. A diferenciação social e a exclusão continuaram, mas foram colocadas num patamar diferente. 


Foi tudo uma ilusão artificial, como agora nos dizem? Teve aspectos ilusórios, expectativas excessivas, mas não foi uma ilusão, foi uma melhoria. Não precisamos que nos venham dar lições morais com a parte da ilusão, para nos arrancarem as melhorias, porque a melhoria de vida dos portugueses deve ser defendida ao limite. O que conseguiram nos últimos anos foi feito com muito esforço, já para não falar da obrigação de reparação do muito que se devia ao homem comum, pobre e trabalhador, pela ideologia da santidade da "pobreza honrada" dos últimos quarenta anos, que deixou uma pilha de ouro no banco e uma população analfabeta e cujos filhos morriam no parto como tordos. 


A discussão em "economês" dos nossos dias faz-se para legitimar o desprezo por estas melhorias, tidas como esbanjamento; pela esperança das pessoas em não perder o pouco que conseguiram, tido por uma reivindicação egoísta de direitos; a que se soma um efectivo desprezo pelo seu sofrimento, tido como pieguice. Sempre achei que atribuir aos governantes que têm de tomar medidas difíceis estados de alma de indiferença face às dificuldades era excessivo, mas agora não tenho qualquer dúvida sobre a frieza e a incompreensão com que olham para o sofrimento dos seus concidadãos.


No meio disto tudo, acabou a esperança, ou seja, acabou o futuro. Para várias gerações, em particular aquela que o desemprego de longa duração - um eufemismo para não dizer eterno - marca com enorme violência, o futuro acabou. Sabem, com um saber magoado mas certeiro, que a partir de agora é só caminhar num plano inclinado sem fim, ou seja, até ao fim dos seus dias. O resultado é não só uma vida devastadora no presente, onde tudo está a começar ou já começou, e onde o amanhã é apenas o agravamento do dia de hoje. Estes homens e mulheres estão sozinhos e também já perceberam que ninguém cuida deles. Estão do lado torto de tudo, não são "jovens" e por isso nem sequer têm direito ao discurso retórico sobre a juventude, são os restos vivos do "esbanjamento" do passado, mesmo quando eram apenas operários têxteis, metalúrgicos, empregadas de limpeza, secretárias, professores, enfermeiros, funcionários públicos, encarregados de armazém, trolhas. Ao lado deles, os jovens têm um futuro radioso, só que fora do país.


Por tudo isto, as mentiras são insuportáveis, até porque as pessoas comuns sabem a verdade. Toda a gente tem uma percepção realista da situação, as pessoas sabem que não vão poder continuar como antes, sabem que as dificuldades são inevitáveis, e sabem que medidas de autodefesa têm que tomar, com as suas poupanças e com os seus gastos. Ninguém pode, a não ser por abuso, tratar os portugueses como se não estivessem conscientes de que os tempos estão difíceis, e que não podem esperar muito, sendo que este "ajustamento" natural das pessoas já se deu há muito. 


Só que uma coisa é esta percepção e outra é validar políticas cujo objectivo não é corrigir excessos, mas empobrecer estruturalmente o país, para que ele possa fornecer mão-de-obra barata, e atirar para a caridade ou para o estrangeiro os muitos milhões de portugueses que estão a mais neste glorioso plano de "refundar" Portugal como um país estruturalmente pobre, que talvez daqui a algumas décadas - a palavra surge com cada vez mais regularidade nos discursos do poder - possa ficar um pouco menos pobre, se "trabalhar muito" e "fizer o trabalho de casa". Será que os governantes não percebem como isto é ofensivo?

Daí as mentiras e a petulância. Um secretário de Estado resumiu essa mentira entranhada quando afirmou no Parlamento que os portugueses deviam estar felizes porque iam ter a devolução de um dos subsídios tirados, porque o Governo cumpria, presume-se com alegria, a decisão do Tribunal Constitucional. Aliás, ele apenas se excitou canhestramente com uma das muitas mentiras circulantes cujo melhor exemplo é o Orçamento do Estado e as sucessivas avaliações positivas da troika, peças de uma política cujos perigos dois ou três dias depois vem o FMI enunciar. A verdadeira avaliação da troika é essa, repete o que toda a gente está a dizer do Orçamento, antecipa o que vai acontecer, mas "Tout va bien Madame la Marquise".


Há por isso mais verdade, na tentativa tardia e desesperada de no Orçamento comunitário se tentar obter o maior número de fundos para Portugal, do que no mambo jambo irreal do nosso Orçamento. Porque, face ao falhanço dos méritos da política de "ajustamento", os nossos governantes, mais Passos do que Gaspar, voltam-se desesperados para as ajudas europeias, porque sabem que são a única esperança de poderem minimizar as suas asneiras. São hayekianos cá dentro e keynesianos lá fora e serão o que for preciso porque se começa a perceber o desespero nas hostes.


Na verdade, os portugueses também já "ajustaram" os governantes. "Miúdos", "garotos", como o povo manifestante bem intui, percebendo a sua inexperiência da "vida", saídos da pior escola, carreiristas e espertos, obcecados pela "imagem" mediática, conhecedores de mil e um truques, tão vingativos como ignorantes, deslumbrados pelo seu poder actual, subservientes face a todos os poderosos, e que incorporaram um profetismo grandioso sobre "refundar" o país, que rapidamente se torna numa luta pela própria sobrevivência política, custe o que custar. O resto é expendable, no inglês técnico de que gostam.


Pode ser que, mais uma vez, os intelectuais traiam, com a obsessão de respeitabilidade, o respeitinho moderado e o sufoco dos bens escassos para distribuir. Mas a obrigação do intelectual, como escreveu Emerson, é "anular o destino", pensar para haver "liberdade". Presos neste miserável destino, o sofrimento de muitos é uma efectiva ameaça à liberdade.

(Versão do Público de 24 de Novembro de 2012.)

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EARLY  MORNING BLOGS   
 
2278 - There is No Frigate Like a Book


There is no Frigate like a Book
 To take us Lands away, 
Nor any Coursers like a 
Page Of prancing Poetry –  
This Traverse may the poorest take
 Without oppress of Toll – 
 How frugal is the Chariot 
That bears a Human soul.

(Emily Dickinson)

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ESQUERDA MOLE, ESQUERDA DURA E ESQUERDA VIOLENTA (5): E A VIOLENTA


11. Existe hoje uma esquerda violenta e essa esquerda está a recrutar nos filhos da classe média radicalizada. Seria de estranhar que assim não fosse. As divisões no BE, com a criação do Movimento Alternativa Socialista, mais radicalizado, e alguns movimentos de aliança entre franjas do BE, jovens comunistas “leninistas”, trotsquistas desirmanados, no Movimento Sem Emprego, jornais e revistas como Rubra, várias páginas do Facebook, alguns neo-anarquistas, estão a dar origem aos grupos que ficam no fim das manifestações diante dos polícias a ver se há pancada. 

12. Os comunistas desconfiam deles, que acham demasiado folclóricos para seu gosto, e compreendem o efeito perverso da simulação simbólica da violência para as câmaras verem, sem consequências. Com máscaras do Guy Fawkes, lenços palestinianos a cobrir a cara, parkas a esconder a cabeça e muto arremedos diante dos polícias, derrubando as barreiras que já se percebeu, pelo comportamento da policia, não é considerado motivo para carga, e ficando ali a provocar com petardos e garrafas de cerveja, diante dos robocops, acabam por prestar um péssimo serviço à violência revolucionária que pretendem encenar. Um bom português, amigo dos forcados amadores, dirá “se eles vão lá para a porrada, por que é que não andam á porrada? Parecem aqueles que dizem “segurem-me senão vou-me a eles, e não vão.” 

13. O que se passa no conjunto de todas as esquerdas, moles, duras e violentas é a sua enorme divisão não só estratégica, como táctica. As suas ideias são diferentes, as suas práticas são diferentes, os seus motivos são diferentes. Enormes diferenças geracionais, de estilo, cultura política e acima de tudo, de condição social, pesam sobre esta desunião de forma até agora decisiva. Não podem mobilizar a gigantesca força latente que a crise gerou, - a recusa populista dos partidos e a raiva contra os políticos, - e por isso acantonam-se nos seus territórios entre a nostalgia e encenação. Vão acabar por votar Seguro contra Passos Coelho, e é difícil encontrar destino mais irónico para a esquerda portuguesa.

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ESQUERDA MOLE, ESQUERDA DURA E ESQUERDA VIOLENTA (4): A DURA


7. A esquerda dura é o PCP e a CGTP e é composta por um contínuo social e político muito consistente e entretecido. Tem uma história, tradições, famílias e identidade. Tem uma base social com muito maior homogeneidade do que o PS e o BE e essa base social está em grande parte organizada no partido e nos sindicatos por mecanismos de enquadramento e mobilização. Não há nada de semelhante em qualquer outro partido, e a comparação que fazia sentido com o PSD do passado, já não tem sentido para o PSD do presente. 

8. A direcção de Jerónimo de Sousa trouxe um ainda maior reforço de identidade, levando o PCP pela primeira vez na sua história a fazer manifestações como partido e não disfarçado de CDU, ou de qualquer outro rótulo “unitário”. Jerónimo não suscita o respeito reverencial de Cunhal, mas também não reproduz o seu afastamento aristocrático, não desejado mas real. Jerónimo é “um deles”, próximo e igual, que transporta consigo o mundo da base comunista como ninguém o fez nunca na história do PCP, a que acrescenta a força e a empatia gerada por ser o único líder político que no parlamento fica genuinamente indignado com a sorte dos “seus” e dos portugueses. É por isso que ele pode sair á rua e ser recebido com estima, por muitos que não são comunistas, mas que reconhecem a sua genuinidade. E também por isso travou a crise do PCP, embora não a tenha resolvido. Mas é um facto que o PCP sobreviveu melhor à crise do que muitos outros partidos europeus, e é impossível falar da esquerda activa e que existe sem falar do PCP. Em França, o PCF, por exemplo, é muito irrelevante. 

9. Mas o PCP ao reforçar a identidade está a acentuar o seu acantonamento, as suas fronteiras e limites. Usa e abusa da linguagem de pau, como é o caso da designação canónica do acordo com a troika de “pacto de agressão”, e tendo a parte de leão na resistência organizada ao governo, das vaias às greves, parece ter atingido uma barreira de crescimento que a prazo se revelará como impotência. 

10. A CGTP tem resistido á crise melhor do que a UGT, perdida nas suas contradições. Mas a CGTP com a sua nova liderança, - que é um erro considerar incapaz,- tem tido também como reflexo do PCP, um processo de auto-afirmação sectária, que lhe pode dar capacidade de organização, mas que dificulta a mobilização. Não se compreende do ponto de vista da eficácia, por exemplo, da greve geral, que a CGTP não apareça genuinamente interessada em obter a adesão dos sindicatos da UGT. Pode-se dizer que muitos vão aderir, mas o impacto de uma greve conjunta das duas centrais seria maior. No actual contexto de contínuas humilhações à UGT, seria difícil, face a um esforço de entendimento e consulta efectivo, a sua direcção recusar uma greve em que os interesses de alguns dos seus principais sectores sindicais, função pública, banca, seguros, são dos mais afectados pelas medidas do governo. 

(Continua.)

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ESQUERDA MOLE, ESQUERDA DURA E ESQUERDA VIOLENTA (3): A MOLE-DURA


6. Classificar o Bloco de Esquerda não é difícil: é hoje um partido socialista radical, próximo de partidos como era o PSU e o PSIUP no passado em França e Itália. No fundo, foi sempre este o projecto de muitos trotsquistas, e ele foi conseguido. O problema do BE é que é pouco para a crise que se vive, o que torna a sua posição demasiado indistinta. Reduzido à sua dimensão parlamentar tem vindo a perder a rua mais radical, deixando a mobilização preguiçosa, fácil e enganosa nas redes sociais, sobrepor-se á organização pura e dura. Com isto, e aqui os comunistas têm razão, os governos podem bem. Está por isso inócuo e acaba por ficar dependente apenas da evolução do PS, que é um pouco esperar sentado por um milagre.

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ESQUERDA MOLE, ESQUERDA DURA E ESQUERDA VIOLENTA (2): A MOLE


4. Comecemos pela esquerda mole, ou seja o PS. Sem o PS nada se faz, com o PS nada se faz, este é o dilema dos que querem pensar ou “trazer” o PS à esquerda, o que é a mesma coisa. O PS tornou-se antes de tudo, como o PSD, numa partidocracia de governo, que não conhece outras regras que não seja manter os lugares, carreiras, território e influência partidária. Não existe nem identidade política, nem ideológica, nem sequer a expressão de interesses sociais e isso verifica-se numa altura em que a crise atinge profundamente as bases sociais dos dois partidos e acaba por não ter expressão no topo. A lógica do topo é apenas a da partidocracia e por isso misturam-se com o establishment que servem, e absorvem todo o pensamento balofo que para aí circula. A geração de Seguro e de Passos Coelho nos partidos, transporta consigo uma enorme necessidade de respeitabilidade, eles sabem que os de cima com quem lidam, não os respeitam, e os de baixo os não consideram, e por isso são pouco mais do que interpretes do mainstream dos interesses já estabelecido. 

5. Por isso, o PS é a grande dificuldade de toda a esquerda, porque no fundo quem chega á sua direcção não é de esquerda, como quem chega à direcção do PSD, não é social-democrata. Entalado entre o silêncio incomodado de Seguro sobre Sócrates, o PS é sempre presa fácil para a propaganda governamental e para a sua “narrativa” da crise. Por outro lado, se assumisse o “socratismo”, institucionalizaria um keynesianismo corrupto, pragmático, e oportunista, tão desertificador como a actual indecisão estratégica e fala-baratismo táctico. Vai ser difícil sair disto. 

(Continua.)

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© José Pacheco Pereira
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