ABRUPTO

23.9.12


QUANDO OS DE BAIXO JÁ NÃO QUEREM E OS DE CIMA JÁ NÃO PODEM


Lenine, que era particularmente sensível à realidade do poder político, como tinham sido Maquiavel e Hobbes, escreveu que "a morte de uma organização acontece quando os de baixo já não querem e os de cima já não podem." A frase é muitas vezes usada para caracterizar uma "situação revolucionária", e tornou-se um truísmo que serve para tudo, até para Aguiar-Branco uma vez no Parlamento embasbacar os jornalistas com um discurso em que citou Lenine, Rosa Luxemburgo e Sérgio Godinho. Quase todas as citações eram abusivas, fora do contexto ou erradas - por exemplo, Rosa Luxemburgo era citada como tendo dito uma frase anos depois da data em que tinha morrido -, mas o efeito de embasbacamento verificou-se. No Parlamento os velhos esquerdistas, como eu, Rosas e Louçã, estávamos divertidos com aquilo tudo, mas que Aguiar-Branco citou Lenine para épater les journalistes, lá isso citou. Devia agora voltar à frase que citou e lê-la em Conselho de Ministros, para ilustração de Passos Coelho e dos seus colegas de governação, porque talvez assim o que essa frase diz sobre o poder político e o seu ocaso ganhe uma dimensão mais concreta.

Uma das vantagens desta frase é que ela é antitecnocrática pela sua natureza, remete para factores subjectivos que costumam ser completamente ignorados por aqueles para quem a realidade é apenas feita de coisas materiais e objectivas, em particular números, estatísticas, projecções, modelos, cuja eficácia fica garantida enquanto apenas se tratar de exercícios abstractos. Ao confundirem modelos com a realidade, eles fazem má economia e péssima política. Dir-me-ão que os melhores modelos incorporam exactamente variáveis "subjectivas", e nenhum economista ignora o papel das expectativas e o natural "ruído" do mundo, que também pode ser expresso em números, só que com equações um pouco mais complicadas e modelos mais complexos.

Porém, o forte traço tecnocrático que atravessa algumas personagens deste Governo não é o problema de fundo que emerge nos nossos dias. Não ignoro que a consciência de que muitos erros foram cometidos no âmbito da decisão política, que originaram desperdícios e "regabofe", iriam gerar o movimento contrário: chamai os técnicos, correi com os políticos. Não é nada de novo, já aconteceu muitas vezes, na I República, no início do Estado Novo, no período pós-25 de Abril. Mas seria errado considerar que o que se passa se deve apenas a um conflito entre "pessoas" e "números", a vida e os modelos, a ignorância dos factores subjectivos em detrimento da crença de que os factores objectivos são tão "incontornáveis" como o diamante é duro. Os partidários desta escola costumam lembrar-nos que os factos são duros e não adianta ignorá-los que eles batem-nos sempre à porta, com tanta maior surpresa quanto os pretendemos ignorar com lirismo verbal e florinhas cor-de-rosa sobre "primeiro as pessoas". Têm razão. Os factos batem sempre à porta de quem os ignora, e foi isso que aconteceu na última semana, mas os responsáveis são os políticos e não os tecnocratas se os deixam à solta.

Que "os de baixo já não querem" é uma evidência, mas quem criou esta situação não foram os números de Gaspar, mas a política de Passos Coelho, o continuado e sistemático desprezo pela realidade a favor de meia dúzia de ideias simples e erradas que cobrem os exercícios de Excel dos tecnocratas por um programa em que as "empresas" são boas e os trabalhadores são maus, os diligentes empreendedores querem "democracia económica" sem direitos e os "piegas" querem manter prebendas a que chamam direitos. Desde o primeiro dia até à Nini cantada, Passos Coelho deu lições de moral que eram a preto, o que as de Louçã eram a branco. Só que Passos manda e Louçã não. E a mistura de ignorância, ideias feitas, incompetência e completa falta de sentido de justiça, e de empatia pela dor alheia, veio desaguar na TSU, como se fosse uma colectiva bofetada na esmagadora maioria dos portugueses. E eles são cristãos, mas não gostam. E estão agora a retribuir.

Olhando do Governo e do poder político para "baixo", o que é que desapareceu? Margem de manobra, a fabulosa e raríssima margem de manobra que este Governo teve em 2011 e 2012, e que se traduzia na existência de um forte consenso de que era necessário haver sacrifícios. Não se pode menosprezar este facto: numa democracia, praticamente todos estavam dispostos a perderem parte do seu rendimento e regalias, para "ajudar" o país a resolver a crise que provocara a intervenção externa. Nem todos concordavam com as medidas, nem todos as achavam justas, nem todos entendiam que estavam a ser tratados com equidade, mas todos sabiam que tinha que haver austeridade. Foi isto que o Governo desbaratou, e nunca mais vai recuperar. E desbaratou-o porque confundiu perda de rendimentos com perda de direitos, perda de regalias, com aumento de desigualdade, e porque praticou um acto de completa injustiça, que virou todos os factores subjectivos contra ele, com a proposta da TSU.

E por que é que isso é dramático? Porque o Governo está longe de conseguir gerir a situação económica e financeira, quer pela sua dificuldade, quer pelos erros que cometeu. Como é que neste ambiente e contexto o Governo pode esperar exigir pelo menos mais três novas vagas de austeridade, sobre as já existentes, entre hoje e 2014? É que o Governo sabe bem de mais que vai ser preciso tomar novas medidas para garantir os 5% do défice este ano (apesar de o Tribunal lhe ter consentido o duplo corte em 2012), a passagem de 5, se os conseguir, para os 4,5% do próximo ano, aí já tendo que resolver o problema da inconstitucionalidade do duplo corte, e, por fim, que ferro e fogo de austeridade nos vão fazer passar em 2014 de 4,5 para 2,5%, um objectivo absurdo de tão zeloso que é. E isto sem contar com a TSU, que tem pouco impacto no défice.

Não vão conseguir, porque aí Portugal será mesmo a Grécia, sem disfarces. O problema é que de há uma semana para cá, já o sabem, que "os de cima já não podem". Talvez seja por isso que, cheio de patriotismo, Paulo Portas quis abandonar o barco e Passos Coelho, sozinho, teria posto a hipótese de se demitir. Que acabou a margem de manobra, sabe-o Passos Coelho, sabe-o Portas, que deve estar tão furioso com a forma pueril como isto aconteceu, sabe-o Ricardo Salgado, que esse sabe tudo, sabe Cavaco Silva, sabe-o Seguro, com pasmo e terror, e até Borges começa a perceber que afinal "o ajustamento não vai correr tão depressa" como desejava. Sabem os blogues ligados ao poder, que forneceram a Passos Coelho um ersatz simplista de vulgata liberal e receberam em troca lugares de assessoria, onde, ou se rabia em desespero, ou se foge por todas as cordas possíveis. Daqui a uns dias, vão almoçar ou jantar com Seguro num evento directo nas redes sociais, para descobrir que "afinal não é tão mau como parecia". É um espectáculo triste, mas já vi vários e o padrão é sempre o mesmo.

Como é que se vai sair disto? Não vai. Vai haver primeiro um ainda maior apodrecimento da situação, semelhante ao modelo de resposta à crise Relvas, ceder na TSU, fazer de conta que não aconteceu nada, incensar a manifestação para a tornar inócua e, mais tarde do que cedo, remodelar. Só que os quadros de Excel de Gaspar vão continuar a piorar e virão próximos pacotes de austeridade em clima de desespero. E aí a crise vai atingir o âmago da democracia, onde aliás já está.

(Versão do Público de 22 de Setembro de 2012.)

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]