ABRUPTO

9.5.12


HUMILHAÇÃO


Nem sempre é fácil escrever algumas coisas. O senhor Alexandre Soares dos Santos é um homem por quem tenho estima e consideração pessoal. Tem mostrado como um grande empresário pode não só servir o seu país na sua actividade de "negócios", no sentido preciso do termo, mas também como compreendia as suas obrigações, em primeiro lugar perante os seus trabalhadores, coisa que pouca gente faz. Permitiu, com a fundação que criou, um trabalho excepcional para uma autognose do país. António Barreto tem materializado uma actividade meritória mostrando como não chega o "economês" para nos percebermos a nós próprios, e a Fundação Francisco Manuel dos Santos, com a Pordata, tem sido, nestes anos, a única produtora de instrumentos fiáveis para o pensamento, mas também para a acção.

O senhor Alexandre Soares dos Santos falou como devia, sem papas na língua, contra o Governo Sócrates, e a tragédia que ele significou para o país. Pagou os custos dessa atitude, muito mais franca e descomprometida do que o silêncio de muitos poderosos que andaram na corte a obter vantagens e que, ainda em 2009-10, defendiam agressivamente o primeiro-ministro de então com a mesma "convicção" com que o fazem agora para o poder vigente. Mas o senhor Alexandre Soares dos Santos fez mais: assumiu no início da crise uma vontade pública de não despedir qualquer trabalhador e de cuidar do seu bem-estar material em tempos difíceis e cumpriu.

Não partilhei, nem partilho, o coro de críticas à decisão de transferir a sua sede para a Holanda, porque, se se espera que o seu grupo económico seja bem gerido, - e ao ser bem gerido manter-se como criador de riqueza e emprego -, tem que se aceitar decisões racionais para um grupo económico desta natureza. E ir para a Holanda, onde, aliás, a maioria das nossas grandes empresas, incluindo as que têm dinheiro do Estado, estão sediadas, é uma decisão de boa gestão. Foi muito atacada, porque a gente de Sócrates e os seus aliados esquerdistas não lhe perdoam a dureza das críticas. Mas eu troco bem o que se possa perder em impostos com o que se ganha em emprego mais sólido em Portugal.

Dito isto, o senhor Alexandre Soares dos Santos, a quem a última responsabilidade de tudo o que acontece com o Pingo Doce vai dar, e que não a rejeita, cometeu um erro que o lado "forte" deste Portugal dos nossos dias não pode cometer. E o Pingo Doce está certamente desse lado "forte" para ter que ter extremo cuidado em lidar com todos aqueles que estão do outro lado, não do lado da força, mas da fragilidade.

Procedeu como se no meio de um ajuntamento qualquer, de "manifestação", seja pelo que for, atirasse um molho de moedas para mostrar que era fácil levar as pessoas a andar pelo chão a apanhá-las, quebrando o ajuntamento. As pessoas ficam melhor com o dinheiro que apanharam, mas sabem muito bem que isso significou andar de gatas pelo chão e isto humilha-as. O modo como se escolheu o 1.º de Maio, o mais politizado dos feriados portugueses, também o mais "social" dos feriados portugueses, o único que está associado a uma simbologia de luta e de reivindicação dos trabalhadores, para fazer isto tem um significado que não pode ser ignorado. O modo como as coisas correram não foi muito diferente de abrir promoções de 50% na carne na Sexta-feira Santa, o que naturalmente seria visto como uma provocação desnecessária aos crentes que aceitam as obrigações dietéticas da sua religião.

Para além desta desnecessária provocação, pode até haver quem pense, entre os responsáveis pelos descontos de 50%, que se tratou apenas de um acto altruísta em tempos de crise, mas então não mediram a amplitude da necessidade que fez a corrida tumultuosa às prateleiras, ajudando a criar o primeiro "assalto" a mercearias do pós-25 de Abril, émulos dos que ocorreram nos anos de 1917-9, onde tais assaltos foram habituais no fim da Grande Guerra.

Os pobres que correram lá pelos 50% para comprar "géneros de primeira necessidade", com o parco dinheiro do mês de Abril ainda fresco no início de Maio, não se escondem, nem têm vergonha, que é um produto que nunca tiveram na vida, um produto para os ricos que têm espaço nas casas, que não vivem uns em cima dos outros. Por isso, não têm qualquer problema em exibir as suas compras e a sua rudeza de "canalha". Vi com atenção muitas fotografias e filmes do "assalto" aos supermercados e lá estão muitos deles, os pobres de sempre, cuja roupa, modos e postura são imediatamente reconhecíveis. Muitas mulheres, barulhentas e "desavergonhadas", com a falta de compostura que caracteriza sempre as "classes baixas", e que muito horroriza "os de cima". Os mais silenciosos entre esses pobres eram negros dos subúrbios e dos bairros sociais, emigrantes brasileiros, e ciganas, com a sua mole de filhos e olhar desafiador.

Estes pobres consomem. Isto pelos vistos é uma surpresa para alguns meninos finos, que acham que ser pobre é viver numa coluna de estatística e para quem aparecerem aos magotes num supermercado a comprar fraldas mostra que "afinal" a crise não é assim tão funda ou então que há subsídios a mais. As televisões, cujos repórteres estão ali como em Marte, são alheios ao sentido do que se está a passar, porque também não é essa a sua "condição" social. Faziam todas as perguntas erradas, fascinados pelos incidentes e pelo tumulto, pelo bom espectáculo televisivo. Tentavam obter declarações sobre se "tinha valido a pena" estar três, quatro, cinco, seis horas a arrastar pilhas de compras sem carrinhos até uma caixa onde esperavam séculos para pagar, e nem sequer percebiam por que razão algumas pessoas mais bem vestidas fugiam de dar a cara e se escapavam das câmaras, cabisbaixas.

Essas pessoas tinham vergonha de exporem a sua necessidade, porque só se espera seis horas numa compra de supermercado, quando se precisa do desconto. E também tinham vergonha por estarem "misturados" com as mulheres do povo, com uma ralé que desprezavam e ignoravam e de que estão cada vez mais próximas. No dia da corrida ao Pingo Doce exibiu-se um dos poucos retratos genuínos da chamada "nova pobreza" que se puderam ver, sem ser através de voluntários assépticos e estereotipados que querem aparecer na televisão e que se queixam que tiveram que "cortar" nas férias a Cancún ou passaram a ter só um carro.

O Portugal dos dias de hoje está como um daqueles cristais muito frágeis que, só de se tocarem, correm o risco de quebrar. O erro do Pingo Doce foi dar um abanão desnecessário e inútil nessa fragilidade, feito a partir de uma posição de força de quem pode escolher, contra a fragilidade de quem não pode.

Não sei se foi para marcar um ponto político, ou para mostrar fraquezas que toda a gente sabe que existem. Porém, enganam-se aqueles que pensam que é o confronto Pingo Doce-CGTP que fica deste dia, porque não fica, nem verdadeiramente conta muito, por muito que algumas cabeças simples, de um lado e do outro da barricada virtual dos blogues e redes sociais, pensem numa espécie de futebol adolescente de que eles são jogadores e intérpretes. Nem sequer fica o confronto entre "consumidores" e produtores/trabalhadores, outro simplismo sem sentido, e nem muito menos os elogios ao "golpe de marketing". Bem pelo contrário, o que fica deste dia é a imagem do que aconteceu no interior dos supermercados, a brutal revelação do "estado" do país e uma directa negação da ideologia da "adaptação" virtuosa e pacífica à crise, uma variante social do "ajustamento" do ministro Gaspar. A corrida aos 50% de desconto diz mais sobre o Pingo Doce e Portugal do que sobre a CGTP ou o 1.º de Maio.

Humilhação é uma palavra pesada. Num certo sentido, a palavra é mais pesada do que o próprio sentimento, porque este pode ser escondido, pode ser engolido em seco, se for secreto. A palavra e a imagem revêem um efeito de revelação e por isso dá pleno sentido ao sentimento de se ser humilhado. Reconheço que aqui se entra no terreno do subjectivo, da impressão, e que nem toda a gente vê o mesmo nos idos destes anos tristes. Mas penso não estar enganado, ao pensar que o que vai ficar é um reforço de um mal-estar difuso e perigoso que anda por aí. Os 50% do Pingo Doce ajudam à instabilidade, porque é mais fácil incendiar o conflito social pela humilhação do que pela austeridade de per se. O senhor Alexandre Soares dos Santos merece a consideração de isto lhe ser dito sem ambiguidades. 
(Versão do Público de 5 de Maio de 2012.) 

NOTA: este artigo e a intervenção em termos semelhantes que fiz na Quadratura do Círculo (na SICN), provocaram um surto de correio, quer electrónico, quer por carta, muito considerável. A esmagadora maioria das cartas e mensagens foram escritas num tom pessoal e emotivo, nalguns casos com os seus autores a falarem longamente sobre o seu testemunho pessoal dos tempos duros que estão a passar. Em todas as missivas existe um forte sentimento de abandono e solidão, de revolta pela deserção de muitos, - políticos, poderes públicos, intelectuais, comunicação social, -  face à sua sorte e destino. Sentem-se do lado errado das ideias e mitos dominantes, sentem-se culpabilizados sem razão, sentem-se "apanhados" por uma reviravolta da vida com que não contaram e que têm a certeza de não merecer. 
Este "assunto" tocou uma corda sensível em muita gente e a todos, na impossibilidade de responder a cada um, lhes agradeço o interesse e apoio, as palavras intensas que escreveram.

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© José Pacheco Pereira
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