ABRUPTO

10.10.10


UM PROTECTORADO DA UNIÃO EUROPEIA


Vamos ver se nos entendemos. A última coisa de que posso ser acusado é a de ser complacente com o Governo de José Sócrates: muito antes do surto de radicalismo actual contra o Governo, critiquei com dureza aquele que me parecia, e parece, o homem que pior fez a Portugal em plena vigência da democracia. Como de costume, quem chega tarde, torna-se mais radical na directa medida em que antes foi complacente, ou pior, quem, por razões de luta interna partidária, foi cúmplice de José Sócrates. Acompanhei sempre as críticas directas que Manuela Ferreira Leite e indirectas que Cavaco Silva faziam à condução suicidária da política económica e financeira desde início da crise. Nessa altura,  a oposição interna no PSD colava-se ao TGV e defendia uma política que era a de Sócrates com outro nome, em nome da "esperança", da crítica ao "negativismo" e da "falta de soluções alternativas". A palavra "dívida" era então tabu.  Quando Cavaco Silva fez um primeiro aviso público de que aí se encontrava um problema grave a curto prazo para Portugal, não foi só Sócrates que fez orelhas moucas. Nem vale a pena voltar atrás - tudo está abundantemente documentado para memória presente e futura.

Que este Governo e este primeiro-ministro são perigosos para o país (ex aequo na gravidade com o Governo Guterres em que Pina Moura deixou o país de tanga, abrindo caminho para uma crise que fez a cama para a actual), também poucas dúvidas tenho. Desejo por desejo, por mim, já Sócrates não governava Portugal há muito tempo, mas a democracia é assim, quem é escolhido pelo povo está lá no Governo por direito próprio e só sai de lá, em condições normais, pelo voto.

Que Sócrates não é sério na sua vida política também não é novidade nenhuma e não é de agora, nem sequer dos tempos da Comissão de Inquérito ao caso TVI, que o afirmo. Também não fui eu quem fugiu de dizer que uma mentira era uma mentira e uma mentira grave porque feita à Assembleia da República. Nem fui eu que protegi Sócrates das múltiplas coisas que ele nunca esclareceu: curso de engenharia, projectos das casas, Freeport, etc., etc. Mas, na altura, estas críticas políticas eram entendidas - pelo PS e pelos seus ecos no PSD - como execráveis críticas de carácter, para depois se chegar, também tardiamente, à conclusão de que com o primeiro-ministro não se pode estar a sós.

Por isso, metam lá no bolso as insinuações de que aqueles que se preocupam com a possibilidade de haver um chumbo no Orçamento de Estado que provoque a queda do Governo - algo que um analista político de quinta categoria percebe de imediato ser a saída mais airosa para um Governo sitiado e acossado - podem estar a fazer um "frete" ao Governo, porque o problema é de natureza completamente diferente. É que o Orçamento, por muito mau que seja, como eram os anteriores, é pouco importante face aos riscos da crise política que o seu chumbo trará. E, mesmo sendo muito mau, contém medidas que não são nossa opção, mas exigências dos nossos credores. Se o PSD fosse Governo hoje, não teria remédio senão tomar muitas dessas medidas ou ainda piores. Se for Governo amanhã, fará o mesmo. Essas medidas vão criar uma recessão? Claro que vão, mas a sua recusa abre caminho a uma bancarrota e a uma eventual saída do euro. Estão dispostos à troca? Parece que há quem esteja.

No Orçamento anterior, e nos chamados PEC1 e PEC2, as decisões tomadas pelo PSD foram justificadas pelo interesse nacional e não para apoiar o Governo. Aliás, no PEC2 até se foi mais longe, e, em vez da abstenção, houve um voto a favor e uma co-responsabilização directa e pública. Não se sabia então com quem se lidava e quem era Sócrates? Ou o erro de avaliação dos problemas das finanças portuguesas e da situação da sua dívida não foi apenas do PS, mas também do PSD?

Na verdade, em que é que a situação do actual Orçamento é diferente da dos PEC que justificaram a abstenção e mesmo o excesso de zelo do voto a favor? A diferença que existe é que a situação de Portugal é hoje pior, muito pior. Se no Orçamento anterior e no PEC1 já havia claras ameaças de que a margem de manobra nacional era escassa e no PEC2 havia a ameaça iminente da crise grega, no PEC3 já estamos perante um descalabro eminente gerado pelos juros da dívida, o fim dos apoios do BCE à banca nacional e a impaciência generalizada de mercados e credores.

A outra diferença entre o primeiro semestre e o segundo de 2010, também para pior, é que uma crise política actual não pode ser resolvida a curto prazo, pela impossibilidade de haver eleições. E não haverá novo Governo antes de, pelo menos, oito meses, e um novo Orçamento antes de quase um ano. Ou seja, no momento de maior crise face ao exterior do país, que precisa de ir pedir dinheiro emprestado semana a semana para, entre outras coisas, pagar o que já lhe emprestaram, nós ameaçamos implodir o país.

Não me sobram dúvidas sobre a responsabilidade abissal e imensa do PS e de José Sócrates nesta situação de verdadeiro desespero nacional, mas seria desastroso que o partido de alternativa, o PSD, ficasse com ele associado no descalabro do país. Os portugueses, na melhor das hipóteses para o PSD, junta-lo-iam ao PS na responsabilidade pelos péssimos tempos que viriam. Um colocou a pólvora, o outro resolveu detoná-la.

O PSD não pode fazer política ao nível dos comentários dos blogues, para quem tudo é fácil, cristalino e, acima de tudo, possível. Aí tudo é fácil. O Orçamento do PS é mau, naturalmente chumba-se. O Governo demite-se, não há problema vemo-nos livres de Sócrates. O PEC3 não se pode aplicar, ainda bem, tem que se ir à despesa. O país vai viver de duodécimos, magnífico, poupa-se. A lista das alternativas ao plano brutal e imperfeito do Governo é ainda pior do que ele, porque mostra uma abissal ignorância sobre o problema da despesa pública portuguesa. Listam-se cinquenta mil instituições, muitas das quais apenas têm em comum o primeiro nome, são colocadas em molho por se chamarem "institutos" ou outra coisa qualquer, e extinguem-se de imediato. Tudo se resolve numa penada, numa retórica de ruptura a rondar a pura imbecilidade alimentada pelo prato habitual da ignorância.

Numa coisa existe continuidade entre o presente e o passado próximo: a ideia da emergência e da gravidade da situação actual de Portugal não entra em nenhuma destas cabeças, como não entra na de José Sócrates. Eles pensam que esta crise é um sobressalto, mais ou menos grave, dentro da habitualidade da vida portuguesa e que podem por isso fazer política como se existisse qualquer margem de manobra para exercícios de estilo. Ruptura em que até Sá Carneiro, num último insulto, é invocado como exemplo.

Nenhum deles compreende que se Portugal entrar em bancarrota, coisa que é bastante provável se estiver os meses cruciais do final de 2010 e muito de 2011 sem Governo e em campanha eleitoral, e portanto sem capacidade para cumprir o programa de controlo do défice a que nos obrigamos junto da UE, não é apenas o FMI que virá, mas sim um possível empurrão alemão para a saída de Portugal do euro. É que, neste momento, Portugal não vai contar nem sequer com o que a UE pôde fazer pela Grécia, visto que encontramos cada vez mais hostilidade, quer nos mercados, quer nos governos, em particular no alemão, que está mais disposto a reconfigurar a zona euro do que a acudir a países que considera incumpridores relapsos.

Neste contexto, há muita gente que anda a brincar com o fogo. E o fogo é a sequência: chumbo do Orçamento, queda do Governo, envenenamento das eleições presidenciais pela crise política, longos meses sem Governo em plena crise externa, e novas eleições, num futuro ainda distante, que não é líquido darem um resultado estável, ou seja, uma maioria absoluta, nem ao PS, nem ao PSD. Eu sei que a expressão "interesse nacional" serve para quase tudo e dá excelentes pretextos políticos, mas também sei que há poucos casos em que a substância dessa expressão, o interesse nacional de facto, se aplica como no actual.

A alternativa, de que estamos já muito perto, é mandar uma delegação das "forças vivas" a Bruxelas a pedirem ao Conselho, à Comissão e ao Parlamento Europeu, que nos governem se fazem favor, que façam de Portugal, como o Kosovo, um protectorado europeu. Então digam que é isso que querem aos portugueses, para ver a resposta.

(Versão do Público de 9 de Outubro de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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