ABRUPTO

1.2.09


UM "MODELO SOCIAL" FEITO CONTRA OS DESEMPREGADOS

O desemprego vai ser para a maioria dos portugueses (e muitos europeus e americanos) a mais profunda manifestação da crise económica e financeira que atravessa o mundo, mais o ocidental do que o oriental. A condição de desempregado atinge, num crescendo de perturbação individual, familiar e social, quem não consegue arranjar um primeiro emprego, quem tinha emprego e o perde, quem é homem e perde o emprego, quem é mulher e perde o emprego, quem o perde junto com outro familiar ao mesmo tempo, quase sempre um casal, quem perde o emprego com uma idade e qualificações que significam que nunca mais terá emprego, ou nunca mais terá um emprego do mesmo valor. Nestes últimos casos, a vida ficará para sempre diferente.

O processo de pauperização está no seu início, porque ainda muitos recém-desempregados têm subsídio de desemprego ou receberam uma qualquer indemnização. Daqui a uns meses, ou a um ano, já nem isso terão e as consequências da condição de desempregado manifestar-se-ão em pleno. Então, a pobreza e a miséria tocarão muitas famílias e o desespero será total. Não sei se nessa altura este desespero desembocará em agitação social pura e dura, porque nem sempre é esse o padrão dos movimentos sociais, mas é possível que tal aconteça. Há uma verdade que deve ser dita nestes tempos de crise: a condição dos desempregados e, acima de tudo, a possibilidade de eles conseguirem emprego têm muito a ver com o modo como os Estados e as sociedades, em particular europeias, estão organizadas. E elas estão organizadas a favor dos empregados e contra os desempregados. Contra os desempregados, repito.

As variantes daquilo que se chama vulgarmente o "modelo social europeu", um produto de uma conjugação de processos, desde o movimento sindicalista reformista com ligações próximas ao Estado, o poder político dos partidos sociais-democratas e socialistas, o ascenso do Estado-Providência, num contexto garantístico que acompanhou o crescimento económico europeu, revelaram-se capazes de garantir um conjunto de "direitos sociais" que efectivamente melhoraram a condição de vida dos trabalhadores. Melhor: dos trabalhadores que tinham emprego, porque, mesmo no seu apogeu, que já está no passado, nunca foi capaz de dar aos desempregados mais do que os subsídios de desemprego ou de os canalizar para o subemprego por via de programas de "formação profissional". O modelo não é eficaz nem para criar emprego, nem para o proteger em tempos de crise.
O papel do sindicalismo na defesa dos desempregados não passa do momento em que trabalhadores empregados se encontram em risco de perder o trabalho. Aí, muitos trabalhadores que nunca se preocuparam em sindicalizar-se chamam, nos momentos de angústia em que recebem a notícia de despedimento, os delegados sindicais que aparecem a conduzir plenários e a falar às televisões. Depois, tudo acaba com a aceitação da condição de desemprego e com uma maior fragilização dos sindicatos. Porque os sindicatos sabem que a passagem de muitos trabalhadores para o desemprego enfraquece o movimento sindical, porque a capacidade dos sindicatos de organizarem os desempregados é pequena.

Nenhum movimento sindical tradicional, seja de influência comunista ou social-democrata, é eficaz em organizar desempregados e em servir como pressão em sua defesa. Porquê? Porque existe uma natural contradição nos objectivos de uns e de outros. O movimento sindical pretende "defender" o emprego e os "direitos sociais", e a rigidez do mercado do trabalho que daí resulta, e assim dificulta a entrada de trabalhadores nas empresas em momentos de crise. Os trabalhadores que têm emprego, onde os sindicatos são mais fortes, não querem de nenhum modo ouvir falar da perda de direitos e regalias adquiridas, mesmo que isso signifique alargar o campo do emprego. Aceitam fazê-lo, como acontece em certas empresas que fizeram acordos com sucesso com sindicatos mesmo comunistas, quando o trade off é a garantia do seu próprio emprego.

O "modelo social europeu" incorpora esta visão e estes interesses e, para além de estar posto em causa na sua sustentabilidade pela demografia quanto à segurança social, revela agora como pode produzir injustiças no contexto de uma crise social que se manifesta essencialmente no desemprego. A contradição que daqui resulta, entre quem tem emprego e quem não o tem, em períodos de crise extrema leva a dois olhares antagónicos sobre a realidade do emprego: enquanto o trabalhador que mantém o emprego olha para o emprego precário, com escassos direitos e garantias, como sendo (e é) uma regressão da sua condição, o aumento do desemprego levará muitos homens e mulheres a vê-lo, pura e simplesmente, como trabalho que dá salário, melhor do que nada. É só esperar algum tempo até vermos, quando a crise apertar ainda mais, como todos os efeitos perversos do "trabalho negro" se irão manifestar, com consequências ainda mais duras para quem tem que escolher entre receber algum dinheiro com muito e mau trabalho e não receber nada e cair na miséria.

Por isso, em tempos de crise, mais valia adoptar-se algumas medidas, mesmo provisórias, mesmo com data marcada para terminarem, para criar um mercado de "trabalho cinzento" com um mínimo de regulação para proteger a dignidade de trabalho, mas sem a rigidez e o garantismo da nossa legislação de emprego, que não impedirá um único despedimento, mas ajudará a provocar bastantes.

(Versão do Público de 31 de Janeiro de 2009.)

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© José Pacheco Pereira
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