ABRUPTO

12.1.07


JOSEPH RATZINGER, A IGREJA E O MUNDO

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Os textos de Joseph Ratzinger escritos como teólogo e homem da Igreja antes da sua escolha para Papa, deixando de parte os mais técnicos, centram-se em meia dúzia de temas recorrentes bastante virados para a relação da Igreja com o "mundo", com a história, com os sistemas de valores circulantes, a interpretação das características da sociedade moderna, e as relações entre a fé, a ciência, a arte e a ética, a guerra e a paz, o legado da antiguidade clássica e o papel da Igreja na construção europeia. Ratzinger é autor de um número significativo de livros, artigos, conferências, intervenções, entrevistas, quer no mundo académico, quer em grandes órgãos de comunicação social, a que não falta um ânimo de polémica, uma vontade de discutir pouco comum na discrição habitual dos círculos mais elevados da Igreja.
Ratzinger está há muito tempo presente na edição portuguesa, embora as suas obras fossem pouco conhecidas fora dos círculos ligados à Igreja e à teologia, em contraste com a presença muito activa na comunicação social centro-europeia e americana. Antes da sua escolha como Papa, estavam publicados desde os anos oitenta vários dos seus textos como Diálogos sobre a fé, A Igreja e a nova Europa, Introdução ao espírito da Liturgia, João Paulo II: vinte e dois anos na história com Fátima presente, Questões sobre a Igreja, O sal da terra: o cristianismo e a Igreja Católica no limiar do terceiro milénio, etc. Depois de ser Bento XVI assistiu-se à saída de muitos outros textos e à reedição de alguns. A Introdução ao Cristianismo é o mais interessante dos textos recentemente publicados.

Existe igualmente em Português uma espécie de guia turístico sobre a Baviera de Ratzinger, que mostra os locais desse catolicismo bávaro muito especial, um dos poucos focos de resistência (ténue, mas real) ao domínio absoluto do nazismo e que ajuda a perceber o Papa no seu contexto alemão.

Na Biblioteca Nacional há um número surpreendente de obras teológicas de Ratzinger em alemão e noutras línguas europeias, o que, tendo-se em conta as dificuldades de aquisição de livro estrangeiros pela Biblioteca, revela que alguém teve um interesse especial pelas obras do então padre e depois cardeal alemão.
Ele próprio reconhece que não é tarefa fácil para "quem tenta anunciar a fé no meio de pessoas envolvidas na vida e no pensamento hodiernos pode sentir-se (...) como alguém que se levantou de um sarcófago antigo e se apresenta ao mundo de hoje com os trajes e pensamento de antigamente, sendo incapaz de compreender este mundo e de ser compreendido por ele", retratando-se a si próprio como o palhaço de Kierkegaard, que corre a avisar a aldeia que o fogo que começou no circo a vai atingir, e em quem ninguém acredita pelas suas roupas ridículas.




A história de Kierkegaard está no seu livro
Enten-Eller (que conheço traduzido em inglês como Either/Or). Aqueles a quem o palhaço queria avisar aplaudiam-no pensando que era mais um número de circo. O texto de Kierkegaard era ainda mais sombrio na sua conclusão (cito da versão inglesa):

It happened that a fire broke out backstage in a theater. The clown came out to inform the public. They thought it was just a jest and applauded. He repeated his warning, they shouted even louder. So I think the world will come to an end amid general applause from all the wits, who believe that it is a joke.


Ratzinger expressa esse sentimento da dificuldade, quase inutilidade, do seu discurso. Há momentos em que se percebe um certo cansaço, suportando um outro "cansaço da Igreja" que ele próprio diagnosticou. Mas a sua escolha como Papa mostra que o tempo em que resistiu a contraciclo ao "catolicismo progressista", à "teologia da libertação" e a um conjunto de propostas teológicas, eclesiais e litúrgicas de "abertura" da Igreja ao mundo que, no seu entender, a descaracterizavam, o tornou menos "como alguém que se levantou de um sarcófago antigo", mas sim como alguém que merece ser escutado, até porque nos anuncia o risco de um incêndio. Foi o que lhe aconteceu no discurso de Ratisbona, presumo até que com alguma surpresa própria.

É aqui que a obra intelectual de Ratzinger é interessante porque, sendo ele conservador, é essa espécie especial de conservador que, tendo sido "progressista", mudou por um movimento da reflexão e experiência individual que acompanhou a história recente da Igreja, depois do Concílio Vaticano II. Por isso é conservador, sem ser reaccionário, e, sem aceitar nem se submeter ao ruído do "mundo", não se volta contra ele negando-o. Como teólogo, combateu sempre a dissolução da identidade cristã e católica no "século", esforçando-se por o compreender, sem aceitar o seu império, e sem "secularizar" a Igreja. Ratzinger demarca-se da Igreja reaccionária do século XIX e grande parte do século XX que combateu a ciência, defendeu a monarquia absoluta, que combateu a industrialização, a democracia, o liberalismo, político e económico, como fizeram muitos papas nos últimos 200 anos.
Ratzinger valoriza o facto de o Concílio Vaticano II "ter coragem de falar não apenas na Igreja santa, mas também da Igreja pecadora" e lembrou que "os séculos da história da Igreja estão tão cheios de todos o tipo de falhas humanas que até podemos compreender a visão horrenda de Dante que viu sentada no carro da Igreja a meretriz de Babilónia"...
Não é esse combate de reacção e negação que o conservador Ratzinger continua, mas sim o de um outro tipo de resistência ao relativismo cómodo, à perda de identidade e de valores sociais, à perda da história e da memória civilizacional, usando a linguagem da filosofia, da história e da cultura contemporâneas.

Ao envolver a Igreja nesse debate em termos que podemos considerar, para além da fé, como fazendo parte da nossa linguagem civilizacional comum, Ratzinger dá uma contribuição intelectual, mesmo quando a faz como um testemunho de fé. E é exactamente porque é entendida como um testemunho da fé - alguns dos seus mais interessantes textos são análises do Credo - que nos comunicam alguma coisa, porque se fundam na convicção da Igreja como uma construção divina. Ao ajudar a dar solidez à "pedra" de Pedro, Ratzinger reforça também um dos nossos alicerces civilizacionais, porque essa "pedra" não sustenta apenas o Vaticano, nem a Cúria, nem a Igreja, mas também o nosso mundo.

Por tudo isto não nos são indiferentes as suas posições e polémicas sobre o papel da Igreja, porque também delas depende o modo como o corpo da Igreja, do Papa aos fiéis, entende a instituição de que faz parte e o corpo de "saberes" que transporta. Se colocarmos em confronto dois teólogos católicos de relevo no século XX, Ratzinger e Hans Kung, verificamos como as respostas que dão ao posicionamento da Igreja têm efeitos no "mundo" muito distintos.

http://www.schwartzbooks.com/mas_assets/full/98/0802826598.jpgAs propostas de Kung encontram-se resumidas nas conclusões do seu livro sobre a Igreja católica, significativamente intituladas "que Igreja terá futuro?" Kung, um padre católico e um dos mais importantes teólogos do século XX, tem um percurso paralelo ao de Ratzinger sem ter no entanto ascendido na hierarquia. Desde a fase final do Concílio Vaticano II, que considera ter sido traído no seu impulso de "reforma", que entrou em conflito com a ortodoxia vaticana e viu a sua missio canonica, que lhe permitia ensinar na cátedra de Tubingem como "teólogo católico", ser retirada em 1979. Nas suas memórias, relata com humor, a sua chamada ao Santo Ofício e o encontro com o grande inquisidor, o cardeal Ottaviani, assim como as suas relações com Paulo VI. O Papa pediu-lhe um "sinal" e Kung não o deu. De forma sibilina, nas memórias, anota que foi isso que o distinguiu de Ratzinger.
Se a Igreja Católica, em nome de um reforço do seu sucesso temporal se tornasse numa instituição multicultural e "inter-religiosa", com fronteiras indefinidas, como aconteceria se as propostas de Hans Kung e de outros teólogos "liberais" e anti-Papado fossem para a frente, rapidamente se dissolveria no "mundo" como mais uma entidade religiosa, sem centro e direcção e certamente sem magisterium reconhecido. Um dos aspectos que mais fragilizam o islão e mais o impedem de se modernizar é a ausência de vozes interpretativas autorizadas. Num certo sentido, e com excepção do xiismo, no islão não há nem Igreja, nem magisterium, e isso contribui para fixar uma interpretação literal do Alcorão, e das suas componentes jurídicas e societais, como a sharia, nos tempos medievais. A Igreja Católica foi capaz de manter um equilíbrio entre o que considera "revelação" e o "mundo" que lhe permitiu sobreviver como instituição global num mundo fortemente laicizado, porque tinha uma autoridade central que interpretava e uma hierarquia que levava a autoridade dessa interpretação aos fiéis.

Como laico, eu valorizo o magisterium da Igreja, mesmo quando dele discordo na sociedade e na política. Prefiro uma Igreja institucional e conservadora a mais um "movimento" com fronteiras indefinidas, mesmo que fundado numa fé genuína dos seus crentes. Penso que sem magisterium a Igreja verdadeiramente nunca seria capaz de mudar e que é pelo magisterium que muda. Um retorno à Igreja comunitária primitiva, a negação do papel do Papa e uma recusa da Igreja hierarquizada trariam ainda mais confusão e um maior deslaçamento da sociedade. A oposição de Ratzinger a estas teses e a Igreja que agora como Papa tem autoridade para ajudar a construir pode não chegar para evitar o velho fantasma que nos ronda as casas, o da "decadência do Ocidente", mas ajuda a esconjurá-lo.

Compreendo que dentro da Igreja, muita da resistência ao "século" pareça empobrecedora para os católicos - por exemplo, a recusa da ordenação das mulheres, ou as posições da Humanae Vitae sobre a contracepção - mas, para "fora", uma Igreja que mude só com solidez e prudência, que afirme um sistema de valores que comunica com outros valores sociais e os reforça é fundamental. Nos dias de hoje, os aspectos mais socialmente negativos das posições da Igreja (sobre moral sexual, por exemplo) parecem-me de todo circunstanciais e, a prazo, acabarão por mudar, mas é essencial que essa mudança se faça sem pôr em causa a autoridade da Igreja enquanto presença moral e espiritual. Pode parecer contraditório desejar ao mesmo tempo mudanças e prudência, mas não é.

Sem a Igreja cristã, seja a "apostólica romana", sejam as igrejas ortodoxas, luteranas, protestantes e a anglicana, o teor do debate "moral" na nossa sociedade seria certamente muito menor. Como tudo puxa para que ele seja pouco e tenda ainda a ser mais escasso, precisamos dessa face da nossa identidade, mesmo que para muitos essa seja uma identidade nostálgica e perdida. Perdida ou actual, ela está lá.
O caso do aborto é típico. Ao resistir à introdução de legislação que permite a interrupção voluntária da gravidez em nome de uma cultura da “vida” face à “morte”, a Igreja não muda a minha opinião (o meu “sim”) mas obriga-me pela sua resistência e pelos seus argumentos, com relevo para os que traduzem posições éticas, a discutir a “vida” e aquilo que se tem nomeado como a “cultura da morte”, o que eu posso – e devo – fazer num contexto laico. E posso e devo fazê-lo, porque há valores envolvidos na decisão de abortar que transcendem os argumentos correntes a favor do "sim" e levantam dilemas morais genuínos . Do mesmo modo se espera que os defensores do "não" considerem existir outro tipo de dilemas morais tão genuínos como os suscitados pela questão da "vida". Uma gravidez não desejada, - e pode ser não desejada por inúmeros motivos - , é também profundamente perturbadora (pode também "matar" em vida) e suscita questões morais que não são menores do que aquelas que se levantam à volta da "vida". Reconhecer uma idêntica valoração moral quer aos motivos da decisão do "sim" quer do "não", é o único ponto de partida para um debate sério e não relativista.
Para o "mundo", faz mais falta uma Igreja sólida, lenta e prudente, ou seja conservadora, do que uma Igreja "progressista". Para "progressismo" e "politicamente correcto", já temos que chegue. Para além disso, marxistas e "progressistas" fazem muito melhor "progressismo" do que faz a Igreja. Este é também o sentido da obra teórica de Ratzinger.

(No Público de 11 de Janeiro, aqui anotado.)

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